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Por Gonçalo Junior (colaborou Marcio Baraldi) 17/04/2011 Tal qual um Don Quixote idealista e sonhador, certamente o guerreiro Miguel Penteado foi o nome mais importante da luta pelo reconhecimento da profissão de artista de histórias em quadrinhos no Brasil. Desenhista e pintor de mão cheia – fez inúmeras capas de gibis de terror da Editora La Selva na década de 1950 –, com longa passagem pelo mundo gráfico paulistano, ele abdicou do traço para se tornar editor de gibi. Em 1959, depois de trabalhar nas editoras La Selva e Novo Mundo, com seu grande amigo Jayme Cortez (1926-1987, saiba mais sobre ele aqui), fundou a lendária Editora Continental, depois rebatizada de Outubro e, por último, Taíka. Os dois e vários outros sócios minoritários ligados às histórias em quadrinhos transformaram o negócio numa trincheira para o quadrinho nacional. Coube à Continental, aliás, ainda no primeiro ano de vida, lançar a revista Bidu, que marcou a estréia de Maurício de Sousa nas bancas de todo país com uma publicação própria. Maurício e os colegas, sob a orquestração de Penteado, então um insuspeito e discreto militante do Partido Comunista Brasileiro, criaram o movimento pela nacionalização dos quadrinhos que levou ao presidente Jânio Quadros (1917-1992), em 1961, uma proposta de lei que obrigaria as editoras a publicarem 66% de material nacional em seus gibis. Era a chamada lei dos dois terços. Jânio renunciou antes de baixar a lei, que coube a João Goulart sua decretação, em setembro de 1963. Com o golpe militar de abril de 1964, Jango foi embora para o exílio e Miguel se refugiou no mundo das gráficas. A lei jamais seria regulamentada – os editores entraram com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal – e o velho comunista lamentaria para sempre ter morrido com seus companheiros na praia. Miguel era um autodidata de múltiplos talentos. Criou gosto pela leitura por circunstância de uma infância difícil. Obrigado a vender jornais e revistas pelas ruas de São Paulo para ajudar a mãe, depois da morte do pai e do irmão mais velho na revolução de 1924, ele despertou seu gosto pela leitura de revistas, apesar de não ter passado da segunda série primária. Não só lia o que vendia como comprava ou pegava emprestado de amigos. Uma de suas preferidas era a revista argentina A Crítica, que misturava humor e crítica político-social pelo traço dos melhores desenhistas do país e que era importada por um distribuidor de São Paulo. A publicação não incluía quadrinhos, mas Miguel era fascinado pelas caricaturas e charges que apareciam em suas páginas. Sua aproximação com o mundo gráfico aconteceu quando ele trabalhava no Foto Labor, na região central de São Paulo. Ali, conheceu Cortez, em 1947, que sempre ia lá revelar e ampliar fotos. O local possuía uma velha máquina Multilith, que ele aprendeu a usar em pequenos trabalhos gráficos para terceiros. O contato com o jovem desenhista português foi tão animador que ele se empolgou com a possibilidade de se tornar um desenhista profissional de gibis. Tudo aconteceu tão rápido, graças ao fato de já ser um desenhista amador, que cerca de quatro meses depois Miguel já fazia suas primeiras histórias em quadrinhos. Estimulado por Cortez, ele esperava conseguir algum espaço nas populares revistas de pin-ups, principalmente na Bom Humor, da La Selva, e, por isso, produziu muitos desenhos de belas garotas. Investiu, então, suas economias na contratação de algumas garotas para fazerem fotos seminuas que ele próprio tirava. Em seguida, reproduziu as poses em desenho e montou uma folhinha de calendário. Surpresa! Deu certo: Miguel, que ganhava pouco mais de 1,2 mil réis por mês, vendeu o projeto da folhinha por 30 mil réis. A dica de usar modelos vivos para fazer ilustrações foi dada por Cortez, que aprendera a técnica com seu mestre português, o desenhista E.T. Coelho. O técnico em revelação e fotógrafo amador que virou desenhista nas horas vagas passou então a fazer cartões humorísticos coloridos, cuja seleção de cores ele fazia “a unha”, como se dizia nos meios gráficos, referindo-se à limitação de equipamentos disponíveis para imprimir as cores das ilustrações – colocadas uma sobre a outra, num lento processo que sempre implicava numa grande perda de papel até se conseguir o ajuste ideal. Ao mesmo tempo, Miguel passou a ilustrar livros para a Editora do Brasil, do “doutor” Carlos Costa, que lhe foi apresentado por Cortez. Nessa editora, conheceu Álvaro de Moya e Silas Roberg, também desenhista e roteirista iniciantes de quadrinhos, respectivamente. Com a dupla faria a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, em 1951. Alguns meses depois de sua aproximação com Cortez, ele soube pelo amigo sobre as atividades e os projetos de expansão da Editora La Selva na área de quadrinhos – até então, era conhecida principalmente como distribuidora de revistas e responsável pela revista Bom humor. “Não fui convidado para trabalhar na La Selva. Eu mesmo me ofereci como colaborador”, ressaltou Miguel em uma longa entrevista que me concedeu em 1992. Ele foi apresentado aos donos da editora por Cortez. “Reinaldo (de Oliveira) era empregado da La Selva, juntamente com um rapaz chamado Milton Júlio. Eles cuidavam das revistas e tentavam proteger o pessoal daqui, os desenhistas brasileiros, e davam serviço para a gente, entende? Mas era muito difícil conseguir trabalho por causa da preferência dos donos das editoras pelo material estrangeiro”, contou Miguel. Seus primeiros trabalhos publicados pela editora – que funcionava num sobrado na Rua Pedro de Toledo, na Vila Mariana – foram as capas da revista policial Seleções Enigmáticas e ilustrações de contos para a revista Gilda, a partir de 1951. A aventura pelos quadrinhos nacionais para os idealistas Miguel Penteado e Jaime Cortez estava apenas começando. Por volta de 1953, Miguel andava descontente com a sua colaboração na La Selva. Mas precisava do bico para reforçar o orçamento. Um de seus rendimentos, havia algum tempo, vinha de colaborações na Gráfica e Editora Novo Mundo, de Victor Chiodi com outro sócio. Apesar de aparecer esporadicamente, Miguel não se conformava com a bagunça da Novo Mundo. A oficina era própria, mas suja, feia e bagunçada. Para piorar, Chiodi devia dinheiro para todo mundo. Ao ouvir as observações do amigo, Chiodi propôs-lhe o desafio de arrumar a casa. Mais precisamente, dirigir a gráfica. “Aquilo me deu muito trabalho, mas consegui colocar as coisas nos eixos quanto aos pagamentos das dívidas”. Miguel se saiu tão bem que logo estava sobrando algum dinheiro. “Decidimos até comprar um armazém na Rua Carneiro Leão. Em seguida, vendemos as máquinas tipográficas e compramos off set. Montamos a oficina e o escritório foi construído num elevado”. Apesar do sucesso, Miguel não estava satisfeito com a função, muito burocrática e que nada exigia de sua criatividade como artista. “Aconteceu que eu já estava com muita saudade do desenho. Avisava Chiodi da minha intenção em relação a isso e ele contemporizava, até que chegou um dia que quis acertar as coisas, sair. Então ele me propôs fazer uma sociedade, dividida em três partes”. Em 1959, uma turma de desenhistas e roteiristas de quadrinhos que trabalhava na La Selva decidiu sair e montar sua própria editora. Estavam juntos outra vez à frente da idéia a incansável dupla Miguel e Cortez. “Sempre estivemos insatisfeitos com a La Selva; eles (os La Selva) formavam uma empresa comercial, mas eram muito arrogantes”, explicou Miguel. A editora nasceu da união de um grupo de amigos que há cerca de dez anos decidiram viver de quadrinhos. A sociedade foi composta por Miguel, Victor Chiodi, Cláudio de Souza, Eli Otávio de Lacerda, Arthur de Oliveira, José Sidekerkis e Cortez. O projeto da Continental brotou também das longas conversas entre Cortez e Miguel no Studioarte desde os primeiros anos da década de 1950. O que aconteceu em seguida virou história. Desavenças entre Miguel e os sócios, principalmente Cortez, levaram-no a sair da editora. Ele, então, fundou a Gráfica e Editora Penteado (GEP), que seria responsável pelo lançamento de parte do material da Marvel no Brasil a partir de 1969, quando publicou pela primeira vez no país Surfista Prateado, X-Men e o Capitão Mar-Vell. Vale lembrar, que apesar da impressão preto e branco em papel barato, típica da época, esses gibis hoje são valiosos itens de colecionador disputados a tapa nos sebos. Mas, gibis estrangeiros a parte, a GEP serviu, sobretudo, para Penteado continuar seu sonho de investir no quadrinho nacional. Assim sendo, nosso bravo Don Quixote continuou sua cruzada lançando muitos títulos de guerra, terror, humor, infantis e muitos super-heróis, como Fantar (um herói-monstro submarino), Pele de Cobra, SuperArgo, e o carismático Raio Negro, de Gedeone Malagola, cujo título teve surpreendente longevidade e transformou o herói num dos maiores fenômenos de popularidade que um personagem nacional já teve, sendo cultuado e reverenciado até hoje pelas novas gerações! Investiu também em muitos livros populares, dos mais diversos assuntos, que eram vendidos, sobretudo pelo correio, um negócio bastante lucrativo na época. Porém, nem tudo eram flores e apesar das boas vendas e dos inúmeros títulos nas bancas, era o auge da ditadura militar e os infames censores não paravam de aporrinhar Penteado, criando caso com suas revistas mais erotizadas e mandando a Polícia Federal recolher tudo das bancas, acarretando-lhe grande prejuízo, além de frustração. Até que em 1972, cansado de ver suas revistas de pin-ups e piadas apreendidas pela censura, Miguel Penteado resolveu parar com a atividade de editor. Tocou sua gráfica de forma comercial até 1980 e se aposentou. Foi morar numa pequena cidade do litoral paulista, onde repousou como um guerreiro cansado, mas orgulhoso, pois jamais abriu mão dos princípios que nortearam sua vida. A missão do Don Quixote estava cumprida! |
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