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Por Carlos Patati 03/04/2011 O que é que têm em comum Jesus Cristo, o Spirit (de Will Eisner), a Emília, do Sítio do Picapau Amarelo, O Fantasma (de Sy Barry e colaboradores), O Guarani e Ubirajara (de José de Alencar), Flash Gordon (de Alex Raymond, sucedido por Dan Barry) e O Menino de Engenho, de José Lins do Rego? Todos passaram pela pena do genial desenhista haitiano, de carreira norte-americana e brasileira, André Le Blanc. Este foi um verdadeiro “mestre dos mestres” hoje bastante desconhecido tanto porque no Brasil esquecemos os grandes com muita facilidade e também porque Le Blanc desenhou muita, muita coisa, sob a assinatura de outros. Um dos exemplos mais clamorosos é toda a sequência de tiras e páginas dominicais que conta a saga dos casamento do Fantasma-que-anda com Diana Palmer, assinada pelo Barry, mas executada, lápis e nanquim, em 1977, por Le Blanc. O qual fez desse modo por solidariedade com o colega espremido pelos prazos. Já estava acostumado a não assinar: na primeira fase de sua vida norte-americana, não assinou nem o que fez com Will Eisner, nem o que produziu em Flash Gordon, sob a concepção gráfica de Dan Barry, não da de Alex Raymond, que teria sabido acompanhar do mesmo jeito; mas era desenhista, não editor, se adequando àquilo que perceberam como correto naquele momento. Nascido no Haiti em 1921, Le Blanc foi educado nos EUA, e já nos anos quarenta era um dos assistentes de Will Eisner no “Spirit”, tendo os dois desenhistas se tornado amigos pessoais. Essa proximidade se manteve através dos anos, de tal forma que, na década de 1980, quando Eisner precisou de um colorista para sua magnífica graphic novel “Signal from Space” (“O Sinal do Espaço”), foi a Le Blanc que recorreu. A essa altura, o veterano artista já tinha realizado sua muito elogiada, reeditada e copiada Bíblia em quadrinhos; no Brasil foi muito mal publicada, apesar dos seis volumes com que contou, respeitando a sequência original. Le Blanc chegou ao Brasil em 1947, casado com uma brasileira, e rápido se firmou como um dos principais ilustradores no mercado, tendo “de saída” se tornado o ilustrador da obra infantil de Monteiro Lobato. Durante décadas seus desenhos foram o padrão, tendo dado a cara de todos os personagens do Sítio por anos e anos, antes deles chegarem na TV Globo. O único livro de Lobato que não ilustrou foi “Os Doze Trabalhos de Hércules”, sabe-se lá por que cargas d'água. Em 1950, a Ebal, que então era a principal editora brasileira de quadrinhos, lançou as Edições Maravilhosas adaptando para quadrinhos títulos importantes da literatura brasileira. A edição de adaptações literárias já vinha do fim dos anos quarenta, quando a própria Ebal e suas imitadoras publicaram no Brasil as adaptações da literatura norte-americana e européia que nos EUA então grassavam, e cujo principal título era o “Classics Illustrated”. Não que esses quadrinhos fossem grande sucesso comercial; aqui, como nos EUA, o assunto era legitimar seus editores, levantar algum prestígio para os quadrinhos, que eram publicações altamente suspeitas. Tanto nos EUA, como aqui, por importação da postura. Quando a Ebal quis mostrar ao grande público que fazia parte do ambiente cultural nacional, que quadrinhos eram dignos de compra e leitura, deu-se conta de que não publicava adaptações da literatura brasileira; de que não poderia, naquele momento nacionalista, prestar atenção a “O último dos moicanos”, sem se interessar pelo “Guarani”! Então empreendeu a tarefa de criar edições especiais da sua “revista de luxo” adaptando nossa literatura; uma revista alinhada com a “Série Sagrada” e a “Grandes figuras da Nossa História”, na tarefa de angarias respeitabilidade para a editora. O primeiro livro a ser adaptado? “O Guarani”, de José de Alencar”! O desenhista da edição, com a tarefa de fazê-la notada? André Le Blanc! A revista teve várias edições, e muitos desenhistas, como Manoel Victor Filho, Nico Rosso, Ramón Llampayas, Aylton Thomaz, Gil Coimbra, José Geraldo, Gutemberg Monteiro (que depois teve longa carreira internacional, também) e outros. Mas é claro que os melhores títulos tanto do romantismo como do realismo brasileiros caíram nas mãos de Le Blanc, que com os anos se aperfeiçoou na sua realização. Ao “Guarani”, se seguiram “Iracema” e “Ubirajara” (a fase indigenista e aventureira da obra de José de Alencar), e mais tarde “O Tronco do Ipê” , de um momento menos aguerrido de nosso principal romântico (pena que Álvares de Azevedo não teve vida mais longa.). Sua colaboração dom a Ebal, freqüente e ininterrupta, prosseguiu com alguns dos principais títulos da obra do realista José Lins do Rego, com “Menino de Engenho”, “Doidinho”, “Banguê” e “Cangaceiros”. Isso sem falar em exemplos específicos de livros de diversos outros autores, como “A Muralha” (Dinah Silveira de Queiroz) “A Amazônia Misteriosa”, (Gastão Cruls), “Sinhá Moça” (Maria Dezonne Pacheco Fernandes), “Cascalho” (Herberto Sales) e outros. Desenhista de mão cheia, poderia muito bem ter permanecido no Brasil ganhando dinheiro com seu desenhos. Fazia parte do seleto grupo de ilustradores de ponta que floresceu no país, onde se pode contar também os nomes de Jayme Cortez, Miguel Penteado, Nico Rosso, Ivan Wasth Rodrigues, Flávio Colin, Colonnese, Malagola, Zalla, e outros, que acreditaram nos quadrinhos e na ilustração brasileiros (feitos para público brasuca) e deles tiraram seu sustento por longos anos. No entanto, no início dos anos setenta, com a repressão da ditadura militar, as coisas devem ter lhe parecido confusas, no Brasil. O grande desenhista também era um poliglota, que falava inglês, francês, e algumas outras línguas. Segundo entrevistas, ficou preocupado em educar os filhos no país, e em português, que lhe parecia uma língua minoritária. Assim reassumiu o trabalho no mercado externo, e como aparentemente não se importava muito com assinar o que fazia, contanto que fosse pago de modo compensador, assumiu sem crédito, em momentos diferentes, algumas tiras então de renome, como o Fantasma (sob ”direção de arte” de Sy Barry), Flash Gordon e Rex Morgan. Este último, como os outros dois, foi grande conhecido dos leitores da imensa página de quadrinhos com que contou o jornal “O Globo”, durante os anos 60, 70 e 80. Criado e escrito pelo desiludido médico Dr. Nicholas Dallis, Morgan foi uma das tiras mais realistas do mercado americano de HQs, por lidar com um médico e não com superseres, aventureiros ou detetives, trabalhando a veia mais ou menos inédita de se falar de pessoas comuns sem traço ou propósito de humor. Bem antes da obra de Stan Lee, traz para as HQs o ritmo novelesco, e de trama centrada no cotidiano. Criticada pelo excesso de açúcar em suas tramas minuciosas, teve carreira longa, mas acabou sumindo, junto com a maioria das tiras diárias seriadas. Embora, segundo quase todas as enciclopédias, a arte seja de Marvin Bradley e Frank Edgington, pelo menos dois outros artesãos os ajudaram no tremendo esforço de manter a tira diária em dia: Tony Di Preta e André Le Blanc. Essa informação vem de entrevistas que concedeu a gente isenta como o quadrinhista e pesquisador Spacca. Não é que fosse tão difícil assim, conseguir crédito. Mas gente como Le Blanc não se via como “autor” do que quer que fosse, mas como um artesão competente, a ser reconhecido por seus pares, e bem remunerado. Prova disso é que gente como ele, ou Gutemberg Monteiro, passaram anos trabalhando sob o estilo e a concepção criativa de outros desenhistas. Assim, mesmo na época em que era um desenhista muito mais completo, como atestam sua Bíblia em Quadrinhos, assinada por ele, ou suas adaptações literárias para a Ebal, realizadas muitos anos antes, Le Blanc não teve o menor problema para se adaptar a exigências menos criativas porém possivelmente mais velozes, como as dos trabalhos de Sy Barry ou Tony Di Preta. Isto não quer dizer que Le Blanc não tenha realizado trabalhos assinados, também no mercado externo. Podemos citar “Morena Flor” série publicada não só no Brasil como na Argentina e em diversos países de fala espanhola, e a engraçadíssima “Intellectual Amos”, ainda dos anos 40 e 50. “Morena Flor” é uma série magistral, do ponto de vista do traço, mas limitada, quanto aos argumentos aventurescos que apresenta. A outra é mais bem sucedida. As HQs são bem escritas, e muito bem desenhadas, sendo hoje um clássico da HQ infantil americana. Amos é um precursor hilariante, do excelente personagem de Alan Moore e Kevin Nowlan, “Jack B.Quick”, que saiu na infelizmente defunta “Tomorrow Stories”. A premissa é a mesma: um gênio mirim, de modo sempre engraçado, traz para os leitores informações científicas contemporâneas ao autor. “Intellectual Amos”, ainda nos anos 40, já fala no mosquito da dengue (e de diversas outras doenças!). A diferença não é só do repertório muito mais sofisticado hoje à disposição de um homem de leitura, como Moore, mas da criatividade e ousadia deste ao desenvolver os episódios e combinar os assuntos. O modo como faz piada e o detalhismo do traço de Nowlan fazem com que a série nitidamente seja mais adulta que a de Le Blanc, talvez de propósito. Mas as sementes estão nesse trabalho pioneiro do desenhista haitiano, que teve carreira mais longa e produtiva de que a de muitos célebres. Pelo outro lado, quando o camarada se torna referência, vira até personagem. No começo dos anos 70, a revista da Turma Titã mostrou um episódio em que os jovens americanos se aliaram a um herói russo no combate a um sofisticadíssimo ladrão de jóias francês, que dá o maior trabalho à turma. O nome do ladrão de casaca? André Le Blanc! Sim, a vida dá muita volta, que o diga esse gigante do traço, muito injustamente esquecido entre nós! |
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