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Por Ota 28/02/2011 Esta é a segunda e última parte da coluna de Ota sobre os seus tempos na Vecchi. Na edição anterior (leia aqui) ele contou como a redação de quadrinhos foi fundada; agora ele narra os bastidores da produção de quadrinhos nacionais dessa editora, que, no seu momento de pico, chegou a criar com artistas brasileiros nada menos que 500 páginas nacionais por mês! Sem duvida uma ótima época para o Quadrinho Brasileiro, onde havia trabalho e público para todos os profissionais da área. Como vocês verão no texto, quadrinhistas chegavam a ser disputados a tapa por grandes editoras como os jogadores de futebol de hoje. Enfim, uma época bem diferente da triste e vergonhosa situação atual! Os quadrinhos nacionais da Vecchi Nos dois primeiros anos em que trabalhei na Vecchi publicamos apenas enlatados. Meu sonho era produzir quadrinhos nacionais, mas ainda não era o momento. Mas, no final de 1975, as coisas começaram a mudar. A primeira revista da Vecchi a publicar material brasileiro foi a Mad. O principal motivo era que o material americano era insuficiente. Nos EUA a periodicidade era de apenas oito edições por ano e nem tudo se aproveitava. Boa parte do material da Mad era descartado. Tínhamos um backlog de 150 edições americanas que podíamos usar à vontade, mas em algum momento iriam faltar páginas e Lotário não queria perder a sua galinha dos ovos de ouro. Ficou estabelecido que começaríamos a publicar seis páginas nacionais por edição. Mas restava definir quem iria produzir esse material. Mad tinha um estilo característico e nem todo artista se encaixaria. Mais ou menos por essa época o cronista Carlos Eduardo Novaes começou a fazer sucesso no Jornal do Brasil. No entender do Lotário ele era o homem indicado. Novaes já fazia sucesso compilando suas crônicas em livros, ilustradas por Vilmar Rodrigues e indicou o amigo para ilustrar suas seis páginas. Entretanto, Novaes não deu muito certo. Ele era bom em texto corrido, mas para escrever quadrinhos ou coisas que mexiam com linguagem visual não funcionava. Sua estada na Mad durou uma meia dúzia de edições e seu contrato não foi renovado. Já Vilmar era a cara da revista e continuou sendo um dos principais colaboradores da revista até morrer na década de 1990. As páginas nacionais foram divididas por cartunistas variados, a maioria vindos do Pasquim como Nani e Guidacci, mas aos poucos foi se formando um time de roteiristas e desenhistas quase exclusivo. Na edição 28 começamos a produzir sátiras nacionais. A primeira foi a da novela Saramandaia, cujo roteiro foi escrito por este humilde escriba que vos fala e desenhado por Vilmar, que também fez a capa. Vilmar era um artista versátil, e desenhava tanto no estilo cartum como realista e segurou a onda nessas primeiras sátiras. Mas a equipe foi engrossando aos poucos. O plano de aumentar progressivamente as páginas nacionais estava em andamento e precisávamos de mais gente. Cláudio Almeida e Carlos Chagas acabaram virando os titulares das sátiras por algum tempo. Cláudio eu já conhecia da Ebal (ele desenhou alguns Judokas) mas era bom em roteiro, e apresentou o então jovem Carlos Chagas, que vinha a ser uma espécie de "Mort Drucker brasileiro" (e também um Norman Mingo brasileiro, pois fazia capas perfeitas). Cláudio e Carlos tinham produzido a revista Klik para a Ebal, uma das inúmeras imitações da Mad que foram surgindo quando ela virou um fenômeno, e foram contratados no ato. Mas Chagas e Cláudio não ficaram muito tempo nessa fase da revista. Em 1976 a Editora Abril resolveu entrar na concorrência e lançou Pancada, adaptação da americana Cracked. A Abril ofereceu mais e ele e Cláudio se bandearam para lá. A Vecchi cobriu a oferta mas depois a Abril cobriu de novo... e Lotário não quis ficar no eterno leilão e os deixou ir. Felizmente os colaboradores não paravam de aparecer, e o Ramade preencheu o buraco deixado pelo Chagas. Logo a revista ficou 50% nacional. Eventualmente, após o cancelamento da Pancada, Chagas e Cláudio voltaram e ficaram até o fim. Mas nem só de Mad vivia a produção nacional da Vecchi. Um importante núcleo de produção começaria a germinar. Primeiro um tentativa foi feita no gênero policial: o personagem de fotonovelas Jacques Douglas ganhou uma versão tupiniquim apócrifa. O roteirista escolhido foi o veterano autor de novelas Hélio do Soveral e o desenhista era Francisco Sampaio, que eu conhecia dos tempos da Ebal. Essa revista, Mistério Jacques Douglas, era um mix composto de uma aventura em quadrinhos de trinta páginas com contos policiais americanos. A revista não emplacou e foi cancelada. Mas o melhor estava por vir. Em janeiro de 1977 lançamos como teste uma edição caprichada de 196 páginas da americana Dr. Spektor, da Gold Key, sob a chancela "Eureka Terror apresenta...". Como vendeu bem, Lotário decidiu continuar a publicação. Mas o material do Dr. Spektro daria para apenas mais uma edição no máximo. Corri atrás de mais histórias de terror, revirando os depósitos de distribuidoras de quadrinhos como a Apla e Record, que tinham nas gavetas centenas de páginas de material de terror encalhadas há décadas, que eles não tinham conseguido vender para editoras como a La Selva. Fuçando nesses depósitos, comprei o que havia por lá a preço relativamente baixo. "As histórias sobrenaturais do Dr. Spektro" virou simplesmente "Spektro: histórias sobrenaturais". Ora, se podia publicar qualquer história de terror, lembrei do Jayme Cortez, com quem tinha amizade. Ele cedeu para republicação O Retrato do Mal, uma história que tinha feito nos anos 60 (e que é um dos maiores clássicos da HQ de Terror Nacional) e me passou o contato de Shimamoto e Flavio Colin, que cederam histórias antigas da época da Editora Outubro e logo começaram a produzir novas. Vendo que havia uma abertura, outros artistas brasileiros foram aparecendo espontaneamente na editora como a dupla Ataíde Braz e Roberto Kussumoto, Elmano Silva, Watson Portela, César Lobo, Ofeliano e uma lista infindável. Roteiristas como Ivan Jaf, Julio Emílio Braz e Carlos Patati também foram se chegando. Pouco a pouco o material americano foi cedendo espaço para os nacionais que não paravam de chegar. Spektro logo ganhou dois filhotes, Sobrenatural e Histórias do Além, estas com menos páginas porém com periodicidade mensal. A linha de terror estava consolidada e um quarto título, Pesadelo, este um almanaque bimestral com 160 páginas que revezava com Spektro. Mas a produção nacional não parou por aí! O sucesso dos faroestes Tex, Zagor e Ken Parker também gerou o aparecimento de similares nacionais. Animado tanto com as vendas das revistas de cowboys e com os talentos da equipe que eu estava arregimentando, Lotário deu carta branca para produzir um cowboy nacional, nos moldes dos faroestes bonellianos. O escolhido para desenhá-lo foi Watson Portela, um dos preferidos das revistas de terror, que indicou seu irmão Wilde Portela para escrever os roteiros. Esse personagem, pode-se dizer, foi criado a oito mãos. O nome foi criado por Lotário. Chet, foneticamente, é Tex ao contrário. Eu estabeleci as diretrizes da história: três personagens, sendo um galã, um outro mais bronco e um adolescente. Eles começariam se vingando de uma chacina e correriam o faroeste atrás de novas aventuras. A partir dessa premissa, Wilde criou os enredos das histórias e Watson o visual dos personagens. A estratégia adotada foi lançar as aventuras inicialmente em capítulos em outra revista, para ir acostumando os leitores. Ken Parker hospedou seu colega durante algum tempo no ano de 1979 e em 1980 Chet ganhou seu título próprio. Watson deu conta da produção das primeiras aventuras na época em que saíam como complemento na outra revista, mas era lento demais para garantir a produção das oitenta páginas mensais da história. Para revezar com ele foram chamados Eduardo Vetillo, Ofeliano e Antonino Homobono. Chet agradou em cheio e logo estava vendendo mais do que Ken Parker. Além de Chet, a Vecchi publicou ainda outro faroeste: Chacal. Os primeiros dezesseis números utilizaram o material da italiana Judas, de Bonelli, que tinha sido descontinuada. Do 17 em diante o novo Chacal apresentou um personagem de produção nacional, que também tinha a alcunha de Chacal mas na verdade se chamava Tony Carson, um caçador de recompensas mercenário e sem escrúpulos. O roteirista escolhido para tocar a série foi Antonio Ribeiro, que vivia de escrever livros de bolso do gênero para as editoras Monterrey e Cedibra. O nome Tony Carson foi emprestado de um pseudônimo com o qual ele assinava esses bolsilivros. Os desenhos ficaram por conta de Antonino Homobono e Jordi Martinez. E assim a produção nacional da Vecchi foi crescendo. As HQs estrangeiras foram cedendo espaço para as nacionais e começaram séries recorrentes como o repórter alcoólatra Jonas Beltron, os monstros do Hotel Nicanor, Sinhá Preta, Jesuíno Boamorte e outros. A lista de nomes e autores é interminável e não dá para citar todos aqui. Mas um destaque todo especial tem que ser dado para a saga da Família Benedito, uma das campeãs de popularidade entre os leitores. A Sina Bestial de Padre Benedito era uma história como outra qualquer. Inicialmente terminaria por ali mesmo. Benedito era filho de um incesto e para escapar da maldição de virar lobisomem foi colocado num seminário. Mas não adiantou e virou um padre-lobisomem que aprontou muitas, inclusive estuprar uma freira antes de ser morto. Era mais um dos roteiros que o criativo César Lobo (que também era ilustrador, mas escrevia histórias) me entegava regularmente. A história foi entregue para o pernambucano Zenival Ferraz desenhar. A história foi programada como história principal de uma das edições da Sobrenatural. Um mês e pouco depois, quando chegaram os resultados das vendas, constatei espantado que as vendas da revista tinham dado um salto de trinta por cento. Obviamente por causa da aventura do padre-lobisomem. Fui para casa com aquilo na cabeça e dormi. De repente acordei com uma idéia e liguei imediatamente para o Lobo: -- Lobo! Quero que você faça a Filha do Padre Benedito! Aquela freira que o padre estuprou blá blá blá pode ter engravidado e essa filha seria também uma lobisomem, mas vê se não mata ela logo. Do outro lado da linha, uma voz sonolenta: -- Ota, são três horas da manhã! Pelo amor de Deus me deixe dormir em paz!... Só então me dei conta da hora. Eufórico com a idéia que tive de estalo, esqueci de olhar o relógio. Envergonhado, pedi desculpas ao Lobo. Mas ele não se fez de rogado e dois dias depois entregou o segundo roteiro. A filha de Padre Benedito se chamava Joana, e como o pai foi enviada para um convento. Isso também não a fez escapar da maldição da família. Depois de aprontar a maior carnificina no convento no sul do país, ela fugia para o Rio de Janeiro, onde continuava a saga. Uma curiosidade: a primeira história se passava no início do século 20. Lobo não se lembrou desse detalhe e fez a segunda ocorrer no século 19. De uma história para outra, o tempo recuou cem anos. Não foi só ele que cometeu esse tipo de erro: quando escrevi a primeira das aventuras dos Monstros do Hotel Nicanor o estabelecimento era uma espelunca na beira de estrada. Na segunda em diante era um hotel de luxo e tinha até quadra de tênis. Nossa produção era tanta que às vezes esquecíamos de prestar atenção nesses pequenos detalhes. Mas agora a série estava planejada para render indefinidamente e Lobo caprichou na linhagem da Família Benedito. Depois de A Filha de Padre Benedito veio Ascensão e queda de Joana. A moça veio para o Rio de Janeiro e se estabeleceu como prostituta, e seus clientes eram figuras proeminentes da corte. Teve sete filhos. O mais novo era filho bastardo de ninguém menos que D. Pedro II. Todos os sete obviamente eram lobisomens. Esses foram os astros de A Vingança dos Sete Filhos da Mãe Joana. A mais velha, Violeta, se acasalou com seu irmão Pedrinho, e ambos geraram um filho que era um superlobisomem. Filho e neto de lobisomens, filho de um incesto e sétimo filho... assim nasceu Manassés! O padre original, Joana e outros parentes que já haviam morrido vieram para O Batizado do Arquilobisomem. Os títulos ainda eram mais instigantes que as histórias! A saga dos Beneditos estava planejada para não acabar nunca, pois os lobisomens iriam tendo descendentes. Na última publicada, quando após mais e mais carnificinas Pedrinho fugia com o filho para o Acre, era anunciado o título da seguinte: "A seguir: Pedro, o Imperador do Acre" - uma paródia ao romance "Galvez,o imperador do Acre", de Márcio Souza, retumbante sucesso na época. Infelizmente o Acre não conheceu mais esse imperador. Estávamos em 1981 e as coisas não iam bem na Vecchi. Meus planos para o ano seguinte eram fantásticos. A essa altura produzíamos cerca de 500 páginas mensais, juntando todas as revistas de terror e cowboys, e mais a cota nacional da Mad. Spektro, Pesadelo, Sobrenatural, Chet e Chacal iam de vento em popa, e ainda saíam edições especiais de almanaques de terror a todo instante. Para 1982, portanto anos antes da Crise nas Infinitas Terras, planejei um mega cross-over misturando todos os personagens nacionais da Vecchi, tanto os cowboys como os sobrenaturais. Começaria com Chet sendo acusado de um crime que não cometeu e virando um fora-da-lei. Atrás dele viria o implacável Tony Carson para correr atrás da recompensa. A perseguição se estenderia até o Brasil, para onde Chet iria fugir, e ele se misturaria com os personagens de terror: algum dos Beneditos, Jesuíno Boamorte, uma jovem Sinhá Preta, os imortais monstros do Hotel Nicanor, e assim por diante. Todos fariam pontas nas aventuras um dos outros. Cheguei a conversar com Wilde e Antonio Ribeiro sobre o plano, que começaria misturando os dois cowboys, e na parte brasileira da saga se estenderia aos outros títulos de terror. Mas nada disso chegou a sair do papel. Infelizmente a bruxa andava à solta pela Vecchi! A situação na Vecchi estava muito tensa. O Brasil vivia a sua primeira crise econômica, houve uma maxi-desvalorização do dólar da noite para o dia e foi uma complicação para muita gente que tinha dívidas em dólar, e no caso da Vecchi isso foi fatal. Os planos de Lotário eram de expansão da empresa e ele tinha investido pesado na construção de um enorme parque gráfico, importando máquinas e construindo um prédio. Além da dívida em dólares ter ido para a estratosfera, o preço do material de construção não parava de aumentar e a Vechci ficou sem caixa. Para piorar, a rixa entre a família Vecchi havia chegado ao auge. Quando Lotário decidiu demitir seus dois sobrinhos, estes e suas mães se reuniram e pressionaram a matriarca Amália Vecchi (viúva do fundador Arturo) a destituir o próprio filho. Os sobrinhos demitidos voltaram, foram promovidos a diretores e se atrapalharam ainda mais. Em um ano conseguiram falir todo um império! Não acompanhei de perto esse declínio. Logo após a saída de Lotário, fui demitido na primeira leva dos muitos passaralhos que fizeram para cortar custos. Às vésperas do Natal de 1981 eu estava no olho da rua. As revistas continuaram por mais um ano, mas tudo desmoronou. Pagamentos de colaboradores começaram a atrasar, salários não eram pagos em dia, fornecedores ficaram sem receber e cortaram os créditos, enfim, o caos! A Vecchi virou uma imensa massa falida! Em fins de 1982 já não restava mais quase nada. Apenas um prédio semivazio reduzido a um mínimo de funcionários desesperados tentando em vão colocar ordem no caos. Pouco depois as portas se fechavam definitivamente e o patrimônio foi sendo liquidado para pagar alguns dos credores que ainda tiveram sorte em receber. E assim termina a saga de uma editora que foi poderosa em seus oitenta anos de existência... hoje só restam lembranças. As revistas em quadrinhos que lancei são reverenciadas até hoje e se tornaram cult. Os personagens estrangeiros foram absorvidos por outras editoras: Tex foi logo para a Rio Gráfica e a Mad voltou em 1984 pela Record, novamente sob meu comando e tornou a ser um sucesso de vendas. Mas essa história ainda vai esperar um pouco para ser contada: nos próximos capítulos desta saga contarei minhas andanças por onde passei após o desemprego da Vecchi: minhas colaborações para a Rio Gráfica e o Pasquim e o livro sobre Carlos Zéfiro que escrevi. Até lá! |
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