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A Coisa do Pântano: do limo pulp a leitura adulta
Por Caio Luiz
06/12/2010

"Descendo a Louisiana, perto da cidade de Houma
Lá atrás, na floresta, entre as árvores sempre verdejantes
Há um monstro feito de limo, plantas, raízes e líquen
Que vive nos pântanos cercado de répteis e insetos rastejantes
E que nunca aprendeu a ser um herói tradicional
Mas transita pelo horror lutando pela paz como elemental"

Monstro do Pântano é um dos melhores quadrinhos de todos os tempos. Gosto tanto do personagem que tomei a licença poética de fazer os versos acima, paródia da primeira estrofe da música Johnny B. Goode, principal clássico de Chuck Berry, para retratar um pouco do que é a mítica em torno do personagem. Tomei a liberdade inspirado no diretor Wes Craven, que inseriu a música Born on the Bayou da banda Creedence Clearwater Revival na trilha sonora do longa metragem que dirigiu em 1982, baseado na criatura do escritor Len Wein e do desenhista Berni Wrightson.

Curiosidades a parte, a dupla que deu origem à “Coisa do Pântano” – tradução literal do nome original, Swamp Thing – não sabia que a pequena história de oito páginas, feita para a edição # 92 da revista House of Secrets de 1971, se transformaria no que viria a ser um marco da transição de quadrinhos como mera forma de entretenimento infantil para uma variação de arte apreciada também por adultos.

Em si, o breve conto narrava a morte e ressurreição do cientista Alex Olsen, assassinado pelo melhor amigo que queria roubar-lhe a esposa enquanto trabalhavam em um projeto. Enterrado no pântano, Olsen ressurge como algo enorme, de cor verde escura, triste, introspectivo (e já com o emblemático telhado triangular de raízes sob o nariz) que queria a amada de volta. O ambiente retratado no começo do século passado, aliado as referências ao icônico monstro Frankenstein, proporcionaram o tema que guiaria as publicações futuras: a constante busca pela restauração da forma humana envolta no clima de horror gótico.

A historieta agradou e o personagem acabou se tornando série oficial da DC Comics no ano seguinte. Os roteiros dessa primeira fase eram de Len Wein, David Micheline e Gerry Conway, enquanto a arte ficou a cargo dos geniais Berni Wrighton, Nestor Redondo e Fred Carillo. Essa equipe transportou o enredo para a década de 1970, fizeram as devidas modificações, e exploraram combates de seres horripilantes com a nova encarnação do Monstro do Pântano, agora o cientista Alec Holland. Na nova versão, Holland e sua esposa são assassinados por criminosos que querem roubar sua formula biorrestauradora, porém a tal formula impede que seu corpo morra, transformando-o num gigante coberto de musgo. Depois de vingar a morte da esposa, a criatura vaga pelo pântano como uma espécie de abominação bondosa porém mal compreendida, que enfrentava o mal, mas tinha um status diferente dos super-heróis tradicionais, de colants coloridos e capas glamourosas. Era como se o personagem estivesse em um patamar periférico do mainstream da HQs americanas, hibridizando os gêneros terror, ficção científica e super-heróis. Porém o interesse do público pelo personagem foi caindo até o cancelamento da revista em 1976, após 24 edições.

Mas a revista voltaria em 1982 , para durar mais # 171 números sem interrupção. Batizada de A Saga do Monstro Pântano, a nova série renderia frutos (ou fungos, se preferir) que redefiniriam a maneira de encarar a arte sequêncial. Graças ao escritor inglês Alan Moore, que assumiu os roteiros em 1984 – quando houve a invasão britânica nos quadrinhos norte-americanos –, a partir da edição # 20, ficando até a # 65. Moore não subestimava os leitores, abusava da linguagem poética, do estilo literário denso e narrativa única para revolucionar com a visão que possuía do herói.

Começou por recriar a origem do personagem. Removeu o aspecto de homem coberto de musgo para introduzir um ser todo constituído de lama, fungos, ervas e ramos que se organizavam de modo a imitar um corpo humano. Com o apoio dos excelentes artistas que desenhavam a serie, como Alfredo Alcala, Alan Veitch e Stephen Bissete, Moore deixou a aparência de cada quadro sempre úmida, repleta de bichos peçonhentos e vegetações rústicas, tornando o odor dos gases pantanosos quase perceptíveis. A sintonia do grupo criativo foi a responsável por arcos de histórias memoráveis e muito bem arquitetadas, como o julgamento de Abby Cabble e a invasão de plantas em Gotham City.

Moore retratou o Monstro do Pântano como um ser conectado ao solo, à água e ao pântano em tempo integral e que possui inteligência diferente da nossa. Uma força da natureza capaz de se regenerar e dialogar com a Mãe Terra a ponto de usá-la como bem entendesse.

Abordou tópicos pesados como necrofilia e incesto que extrapolaram inclusive os limites do Comics Code Authority (CCA), caso do número # 29, e que chegaram às bancas mesmo assim. Passou a aproximar o personagem de situações que envolviam magia negra e demônios e a construir uma odisseia profunda de autodescoberta acentuada pelas sensações de viagens lisérgicas.

Chegou a levá-lo ao inferno em busca da namorada Abby, para um resgate épico, numa alusão à Divina Comédia de Dante Alighieri. Ignorou o tratamento maniqueísta tão comum ao universo das histórias em quadrinhos e foi polêmico ao apresentar a forma inusitada e curiosa como o Monstro fazia sexo. Em uma história magnífica, com a arte de Stephen Bissete e John Totleben, Abby Cable come um dos tubérculos que brotam da pele vegetal da criatura e com as propriedades alucinógenas da estranha batata tem uma experiência sexual digna das descrições dos efeitos de drogas ancestrais do livro A Erva do Diabo, de Carlos Castañeda.

Quando inicia o arco de história Gótico Americano, Moore mergulha na essência primordial do título e resolve conduzir o protagonista pelas entranhas dos Estados Unidos ao introduzir o cicerone macabro dessa jornada, ninguém menos que o mago britânico sem escrúpulos, John Constantine, que guia Alec Holland misteriosamente por cidades onde enfrenta criaturas clássicas do terror, como o lobisomem, vampiros, zumbis, fantasmas, porém utilizando-os como ponto de partida para criticar a intolerância social, o machismo, o racismo e a cultura armamentista presentes no âmago da sociedade estadunidense. É genialidade ao cubo com toques dos contos sombrios e influência explícita do autor H. P. Lovecraft!

O próprio criador do Monstro do Pântano, Len Wein, dizia não se incomodar com a dissecação que Moore promovera no personagem. Todas as guinadas que iam reformulando e tornando a história do monstro complexa, filosófica e voltada para um público mais velho, na verdade, fascinavam Wein que ficava ávido pelos novos scripts do inglês e aprovava o rumo que a série tomava.

Depois de várias experiências com o personagem, como transportá-lo para vários planos de existência e  planetas diferentes, além de transformá-lo em uma espécie de divindade, Moore considerou que as possibilidades estavam esgotadas e decidiu que era hora de partir.

O nível de qualidade dos enredos e arte fizeram com que o título fosse considerado histórias para maiores de idade e se tornasse um dos precursores da Vertigo, selo de quadrinhos adultos da DC. Para substituir Moore foi chamado outro maluco, Rick Veitch, que escreveu mais 24 edições e abandonou o título na edição 88, quando a DC censurou uma história em que o grandalhão esverdeado se encontrava com Jesus Cristo em pessoa. Doug Wheeler, Jamie Delano, a novelista Nancy Collins, Mark Millar, Brian K. Vaughan e Neil Gaiman foram outros autores que escreveram o título nos anos seguintes.

Se eu fosse você, colecionador ou não, leitor assíduo ou esporádico, iria aos sebos para garimpar tudo que puder deste divisor de águas das HQs que é o Monstro do Pântano. Mas não vai ser fácil. Pois como boa parte dos gibis publicados no Brasil, a cronologia está espalhada em volumes diferentes, alguns muito raros, da editora Ebal e da Abril, nas revistas dos Novos Titãs, Superamigos, Super Powers e Monstro do Pantâno em formatinho e formato americano. Sem trocadilhos, as raízes e frutos do Monstro Do Pântano estão espalhadas por centenas de gibis pelo Brasil!

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