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Por Carlos Patati 15/11/2010 Tenho um irmão dez anos mais velho. A diferença de idade nunca se meteu no caminho de nossa amizade, que permanece boa e forte até hoje, embora com menos conversa cotidiana, já que ele mora no Maranhão. Foi ele quem plantou as raízes da coleção de gibis que hoje viceja aqui em casa, cujos componentes mais antigos surrupiei dele, naquela época em que nosso quarto conjunto e muito bagunçado dava nos nervos de nossa mãe. Ela nunca entendeu que livro ou revista era de quem, notando principalmente, isso sim, que desarrumávamos a casa dela. Daquele jeito nunca poderíamos ir visitar a baronesa. Demorei a entender o que era uma baronesa, e, depois que o fiz, nunca quis conhecer uma. Naquele tempo, em que lutávamos pra proteger, ao menos os gibis mais bacanas da sanha de “limpeza doméstica” que imperava, havia no nosso quarto uma caixa onde nasceu um pacto contra o extermínio. Nada do que estivesse ali dentro podia ir parar na lixeira. Com o crescimento da coleção, o caixote foi trocado por um maior que, com o tempo, transbordou para as estantes, afinal inevitáveis. As revistas da editora O Cruzeiro tiveram um papel bastante importante, nessa verdadeira guerra de movimentos. Facílimo compreender o motivo principal por que elas foram tão longamente poupadas: eram as únicas, naquela época dominada pelo padrão p&b da Ebal, a ser em cores. Eu já as conheci na situação de antiguidades. Meu irmão fez as negociações pela sua sobrevivência com base no fato de que eram em cores, numa época em que isso era uma novidade. Nossa mãe deve ter ficado sem argumentos diante da profusão de cores daqueles gibis. Eu, é claro, ainda não tinha condição de me importar, quando meu mano conseguiu essa importante vitória. Hoje, permanecem comigo diversos remanescentes dessa era, cuidadosamente guardados em sacos de plástico, um expediente que só fui conhecer bem mais tarde. A coleção, que era do meu irmão, já tinha alguns exemplares antigos, mas na minha mão esse número se multiplicou. Ele se desinteressou por gibis, aos poucos, de modo que rapidinho a coleção dele virou parte da minha. Por mim, claro, o destino de gibi nenhum era a lixeira. Minha mãe ficou aliviada, a princípio, quando viu que trocava alguns, de modo que não se deu conta da crescente dimensão das pilhas, dominadas pelos gibis da Ebal, mas com aquelas raridades coloridas escondidas. As HQs que tinham trânsito mais livre lá em casa, nessa época, eram as do Pererê, do Ziraldo, gibi da Editora “O Cruzeiro”, sim. Fazia parte desse estranho, classudo universo dos raros gibis em cores. Os desenhos grandes eram fáceis de entender e seduziam até minhas irmãs, que não suportavam a aparente confusão das cenas de ação de outras revistas em quadrinhos, nem que fossem Disney. Eu, que estava crescendo com os gibis da Ebal, olhava aquilo fascinado. E mexia com o maior cuidado nelas. Verdade que as revistas Disney eram todas coloridas, mas saíam no famigerado formatinho, o qual, pra mim, desmoralizava qualquer gibi. Para mim, mais fascinantes ainda que esses gibis do Ziraldo, até por serem completamente diferentes de todo o resto, tanto quanto eles, mas num sentido realista, eram as Combate, coloridas, igualmente publicadas pela Editora “O Cruzeiro”. Todas as HQs eram sobre episódios verídicos da II Guerra Mundial, e raramente tinham balões, sendo compostas por cenas sequênciais legendadas. Contudo, a dinâmica da narração era ágil, e aspecto “sujo” dos desenhos os tornava mais verossímeis. Não havia heróis fora do comum resolvendo tudo sozinhos, mas pessoas comuns colaborando, conseguindo vitórias tremendas em situações terríveis! E.. o que me deixava eletrizado: aquilo tinha acontecido! A única vez em que essas HQs se dedicaram ao heroísmo individual de alguém, foi ao de JFK, que na Segunda Guerra tripulou um barco de nome PT-109, o qual passou pelas maiores agruras, enfrentando os japoneses no Pacífico. Assim, desde pequeno sei desse episódio, graças a esse trabalho, hoje sei definir, de HQ histórica. São as HQs que mais fizeram para que eu admirasse os EUA, durante minha infância; muito mais que qualquer aventura do Capitão América, que conheci bem depois. Anos mais tarde, descobri que esses gibis de guerra, com tom semi-documental, eram originalmente publicadas pela Dell Comics, uma editora hoje extinta faz tempo, mas que teve seus dias de grandeza, como essa série, desenhada, e, suspeito muitíssimo, escrita pelo grande Sam Glanzman, a meu ver, o único desenhista de fato realista de histórias de guerra. Mesmo grandes artistas, como Joe Kubert, Russ Heath, John Severin, Alex Toth, Wally Wood, pagaram seu tribute ao romantismo, engrandecedor da imagem heróica do soldado vencedor. Os personagens de Sam Glanzman, tal como os de Harvey Kurtzman (que só conheci bem depois), são só uns desesperados tentando sobreviver a situações terríveis, mostradas com grande rigor documental. Se é verdade que essas histórias não têm o apelo humano, a construção de psicologia de personagem do trabalho de Kurtzman, sua riqueza factual e documental está no mesmo nível, pelo menos.. Hoje, mais informado, percebo que Glanzman é um desenhista menos artista que todos esses que citei. Mas o seu testemunho tem a urgência, a intensidade, de quem viu acontecendo. Sua Pearl Harbor, por exemplo, é um inferno de chamas, não uma paisagem bagunçada por um tiroteio bem educado. Mais tarde, confirmei esse dado: trata-se de um veterano da segunda guerra. Não romantiza. Sua carreira foi, e ainda é, versátil; embora nunca tenha feito super-heróis, militou no mundo heróico, sim, com um traço diferente (o assunto também era), na Charlton Comics. Eram as aventuras de Hércules, o semi-deus, muito bem pesquisadas do ponto de vista mitológico e realizadas com uma leveza que não remetia às suas HQs de guerra. Essas belas HQs foram publicadas no Brasil primeiro em p&b, formato americano, pela Gráfica e Editora Penteado, e depois em formatinho colorido pela Bloch. O trabalho de Glanzman, para mim, ficou mais reconhecível nas HQs de guerra e terror realizadas para a DC, nos anos 70, em gibis como a “Weird War Tales” (no qual fez a série “The Haunted Tank”, o “Tanque assombrado”, com texto de Robert Kanigher), “Haunted House” e do tipo, que a Ebal publicou em cores como “Histórias da casa mal assombrada”, quebrando sua já então antiga promessa de nunca publicar material de terror. Mais recentemente, foi “inker” ( Fez o trabalho de passar tinta nanquim, por cima do lápis!) de Tim Truman em duas minisséries publicadas pela Vertigo e escritas pelo genial Joe Lansdale, acerca do caçador de recompensas mais feio e realista das HQs americanas, o grande Jonah Hex! Essas HQs, apesar de toda a presença sobrenatural, assustam mais por seus elementos humanos... Gosto muito desses trabalhos todos. Contudo, tenho antiga dívida de gratidão com as HQs de guerra que Glanzman fez com tão óbvios cuidado e talento...não só me acordaram para o potencial expressivo das HQs, como granjearam o respeito do nosso pai pelas pilhas de gibis no nosso quarto. Ele quis saber de onde eu tirava tanta coisa sobre a segunda guerra, como os já referidos episódios do PT-109 e de Pearl Harbor, a ordem aliada de afundar o “Bismarck” a todo custo, depois da tremenda vitória alemã ao acertar o paiol do “Hood”, e as de Rommel à frente do Afrika Korps. Meu mano abriu o maior sorriso, depois da verdadeira palestra que proferi, quando meus pais nos deixaram em paz com a crescente bagunça de gibis e livros... |
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