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Por Gazy Andraus 12/10/2010 Pouco se conhece dos gêneros literário-imagéticos das histórias em quadrinhos. Na verdade, ainda não se percebe que as HQs, como quaisquer outras artes (vide Cinema e Literatura convencional), podem ser feitas para distintos públicos, incluindo-se variadas faixas etárias, bem como possam ter sua estrutura narrativa de diversos temas e enfoques, como acontece igualmente nos filmes e livros. Menos ainda se sabe do estilo poético que também é absorvido pelas HQs. E deste, há um em especial, ora chamado de HQ poética, que acabou por ser elaborado de uma forma especial e única aqui no Brasil, tendo inclusive sido demonstrado na revista Língua Portuguesa. Mas dessa variante, eu reconheço também o estilo Fantasia-filosófica, do qual comungo em minha produção quadrinhística. Este pequeno texto vai tentar demonstrar a importância de se perceber tal gênero nas HQs, e também a originalidade de sua criação por artistas nacionais, de uma forma não premeditada, mas eclodida devido à própria idiossincrasia do povo nacional, vivendo em constantes crises gerais, principalmente financeiras. Sabe-se que levou muitos anos a que os brasileiros começassem a ser reconhecidos como bons autores de quadrinhos. E não me refiro aos desenhistas de super-heróis, que na maioria são ótimos desenhistas, mas que não podem mostrar seu potencial nos roteiros. Refiro-me aos autores que vêm surgindo Brasil afora. Na verdade, bons autores de quadrinhos brasileiros sempre existiram. Lembro-me da década de 1970, com a revista “Crás” que trazia um elenco de autores excelentes, como Xalberto, Herrero, Perotti, Jayme Cortez e muitos outros. Havia na revista histórias em quadrinhos para todas as faixas etárias e o conteúdo era excelente. Portanto, esta tese de que os autores brasileiros não eram tão bons quanto os estrangeiros, não se sustenta. O que houve, foi que, com a dificuldade do autor nacional ter seu campo de trabalho respeitado e conseqüentemente ficar sem remuneração á altura, ter que dividir sua arte com outros ofícios, não tendo tempo suficiente para preparar histórias mais complexas e mais referenciadas. Assim, a massa crítica suficiente para se construir um estado gregário (e “egregário”) na área da produção dos quadrinhos, que existe em outros lugares, foi surgindo aos poucos no Brasil, mas ainda não se solidificou por completo. Esta “massa crítica” é a que vai manter os quadrinhos e autores sempre ativos e entusiasmados, e a divulgação sempre presente e valorizando-os, como ocorre nos EUA, Japão e principalmente em alguns países europeus como na França, Bélgica, Espanha e Itália. É nessa “massa” que a “fermentação” vai ocorrendo, e que “contamina” os autores, suas idéias, fazendo com que se mancomunem ao criarem. E os roteiros e desenhos tomarão maior profundidade, no geral (isto sempre aconteceu em ciclos e agora pode estar voltando...). Até então, o que vingou no Brasil foram os estúdios que empregam desenhistas e roteiristas, como o que existia dentro da Editora Abril e o sempre ativo do Maurício de Sousa, além dos desenhistas de super-heróis. Faltou mais abertura para a editoração mais autoral (que “escorreu” pelo fanzinato, pela editoração independente, irregularmente, mas de forma extremada criativa). Desenhar histórias em quadrinhos é uma parte da autoria. Elaborar roteiros também. Agora, um só autor mesclar roteiro com desenhos, como um todo, faz a diferença neste tipo de trabalho. Há muitos autores que roteirizam e desenham suas HQ, em quaisquer lugares no planeta. Assim como há atores que se tornam diretores, no cinema. Isto não diminui o valor do trabalho dos desenhistas exclusivos, nem dos roteiristas. Cada qual é necessário, e executa da forma mais sincera que lhe aprouver, seu trabalho artístico. Mas me refiro especificamente aos autores de um traço/roteiro pessoal, que unem desenho e texto de forma híbrida, quase que simbiótica, como um artista que trabalha com conceitos. Dos autores norte-americanos que têm trabalhos assim, faço lembrar da fase mais madura de Will Eisner, em que um dos melhores exemplos é a história “Contrato com Deus”. Nela, as páginas trazem mesclas de desenhos com os textos fazendo parte do grafismo (Fig. 1). Isto reflete um pouco dessa situação poética, em que nas HQ poéticas os textos também se somam à arte conceitual gráfica. Não é imperativo para tal estilo, mas em geral muito utilizado por tais autores. Na França, Caza (Philippe Cazamayou) e Philippe Druillet são dois dos pioneiros autores que tinham uma “caligrafia” personalizada para seus trabalhos (incluindo o desenho da escrita), que acabaram sendo influência para o Brasil (Figs. 2, 2a e 3). Além deles, Moebius (o mais famoso) fazia HQ de temáticas fantásticas, e até non-senses, que se passam em mundos alternativos. Com Jodorowski, criou obras-primas como a série “Incal”. Os “mundos” desérticos ou extraterrestres vistos nas HQ de Moebius (Fig. 4) ou Caza (ou ainda os macro-arquitetônicos cósmicos de Druillet), por exemplo, impingiram em mim um registro visual e conceitual das possibilidades de criação nas HQ, que recriariam em minha mente imaginativa novos padrões, novas formas de reler tais “universos”. No meu caso, a influência se completava em questionamentos de ordem existencial direta, e também nas eternas questões de ordem humana que atormentam, desde religiosos a cientistas: as eternas perguntas de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Estes conceitos, em realidade, são o estopim de todas as criações (artísticas e/ou não) humanas). E acabam por serem travestidas de metáforas, de outras roupagens, de diluições e recriações,.ainda que a maioria destas criações não mais aparente ostentar tais inquirições. O que os autores de HQ poéticas, ou então, fantástico-filosóficas fazem, é ir direto à essência de tais buscas humanas, “filtrando-as”, ou canalizando-as diretamente em uma arte “condensada”, sintetizada, similar à forma dos hai-kais, que torna muitas vezes difícil o entendimento racionalizado instantâneo do leitor. Um Hai-kai tem uma estrutura própria, em que a poesia, métrica, rítmica a torna direta, sem que aparente o ser: faz com que a mente do leitor se torne focada, pense mais rapidamente, e conclua de uma forma muitas vezes “inconclusa”. A mente oriental se presta a isso, pois tem uma ativação um tanto diferenciada da mente dos ocidentais. Isso se revela cientificamente através da tomografia computadorizada de um cérebro em atividade: os hemisférios direitos e esquerdos de chineses e japoneses, por exemplo, executam algumas tarefas de forma “trocada”, distintamente dos cidadãos ocidentais, como na leitura dos ideogramas, lidos como “imagens” pelos chineses, enquanto que as palavras ocidentais são lidas de forma racionalizada e não como imagens ou desenhos (estes, os quais incidem nos hemisférios direitos). Dessa forma, diferentes tipos de escritas existem: a literatura de narrativa descritiva, longa, ou mesmo científica, objetiva, é diferente de uma imagem que sintetiza o que se quer explicar. Por isso os pesquisadores e cientistas lançam mão, quase sempre, de subterfúgios metafóricos para explicarem suas descobertas: da mesma forma, uma poesia, um hai-kai propõe uma diferente abordagem e “sensação” mental, ao ser lido. O mesmo caso se aplica ao Koan, como neste exemplo a seguir: Hakuin, um mestre japonês da seita Zen Rienzai, costumava questionar os seus discípulos: "como é o som de uma só mão batendo palmas?". Um koan é uma metáfora, uma questão, utilizada pelos mestres zen-budistas para que os seus alunos consigam dar o “salto” em suas mentes. O koan é uma frase-questão cuja resposta não reside numa lógica cartesiana, mas sim num recrudescer de um pensamento mais sistêmico, alinear, em que use do hemisfério direito (da criatividade, intuição), de forma tão equilibrada (ou mais) quanto se usa do hemisfério esquerdo (racional, linear e cartesiano). Continua na próxima semana. |
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