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Por Matheus Moura 29/09/2010 “Uma provocação filosófica em linguagem quadrinhística, visual.” A maioria das pessoas conhece as tradicionais Histórias em Quadrinhos (HQs), o que muitos não sabem é que esta mídia possui um gênero singular, envolto em questionamentos e análises a respeito da condição humana. Por alguns é chamado de poético-filosófico, por outro de fantástico-filosófico. Mas uma coisa é certa: independente da nomenclatura, esse estilo de quadrinho instiga o pensar e vai além de simplesmente contar histórias. Para explicar melhor o que vem a ser os quadrinhos poético-filosóficos, conversamos com o Dr. Elydio dos Santos Neto, Doutor em Educação pela PUC-SP, membro do Observatório de Quadrinhos da USP, do Grupo INTERESPE e do Grupo de Estudos e Pesquisa Paulo Freire da UMESP. Recentemente terminou o pós-doutorado no Instituto de Artes da UNESP com a pesquisa “As Histórias em Quadrinhos poético-filosóficas no Brasil: Contextualização histórica e estudo das interfaces educação, arte e comunicação”. Desde janeiro de 2000 trabalha no Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em São Bernardo do Campo, como docente e pesquisador da linha de pesquisa Formação de Educadores. De acordo com o pesquisador, “na perspectiva de construir uma proposta educacional coerente e com as necessidades de nosso tempo, tenho defendido uma educação na/para inteireza, em que a arte e o processo de autoconhecimento ganham especial importância”, destaca. Como é possível observar na entrevista abaixo, a questão da “arte e o processo de autoconhecimento” vai ao encontro da proposta dos quadrinhos poético-filosóficos, o que pode fazer deles um grande aliado como ferramenta educacional. 1- Atualmente apresentou sua tese de pós-doutorado no Instituto de Artes da UNESP, tratando a respeito das Histórias em Quadrinhos (HQs). Na verdade aborda um estilo peculiar dessas narrativas: às HQs poético-filosóficas. O que levou-o a pesquisá-las? Desde a minha infância sou um apaixonado por histórias em quadrinhos e ao longo de toda minha vida tenho mantido este encantamento. É bem verdade que nos anos em que me dediquei aos meus estudos de mestrado e doutorado eu me distanciei um pouco dos quadrinhos, mas, de fato, nunca deixei de ler as revistas ou de me interessar pelas novidades que estavam sendo publicadas. Contudo, desde o início de 2005 voltei a me aproximar do mundo das histórias em quadrinhos e, no final deste mesmo ano li um artigo, de autoria de Gazy Andraus, intitulado “As histórias em Quadrinhos Brasileiras: para uma criatividade sui generis” e, curiosamente, notei que vários autores nos quais ele se referenciava para pensar as histórias em quadrinhos eu também tinha como referência para pensar a educação. Aquilo me deu um indicativo de que eu poderia reaproximar-me das histórias em quadrinhos trazendo-as para dialogar com a educação. Fiquei contente com aquilo. Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o Gazy Andraus no Observatório de Histórias em Quadrinhos da USP (sob coordenação do Prof. Dr. Waldomiro Vergueiro), em princípios de 2006, e tomei conhecimento do trabalho artístico em histórias em quadrinhos que ele realiza. Identifiquei-me de imediato com a sua produção, pois vi nela um trabalho criativo que juntava a linguagem dos quadrinhos com a preocupação de refletir sobre a vida, seu sentido, seus problemas. Ou seja, eu vi uma provocação estimulante para o meu pensamento, que primeiro percebi como filosófica e depois como poética. Era provocação filosófica que não tinha, porém aquele formato acadêmico com o qual estava acostumado. Uma provocação filosófica em linguagem quadrinhística, visual. Aos poucos fui lendo tudo o que ele produziu em fanzines, revistas e álbuns e também conhecendo outros autores que tinham trabalho similar: Edgar Franco, Flávio Calazans, Antonio Amaral, Joacy Jamys, Luciano Irrthum, entre outros. Fiz contato também com algumas análises que Henrique Magalhães, da Editora Marca de Fantasia, e Edgard Guimarães, editor do fanzine “QI”, fizeram sobre os quadrinhos poético-filosóficos. Isto tudo foi me fazendo ver que havia algo rico e criativo ali para ser fruído como leitor de quadrinhos, mas havia algo também a ser explorado do ponto de vista da educação. Neste mesmo tempo comecei a freqüentar os congressos da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Vi que podia ir estudando os quadrinhos poético-filosóficos num diálogo entre educação e comunicação e comecei a sistematizar meus estudos. Daí para a proposição de um pós-doutorado, que tivesse como objeto de pesquisa as histórias em quadrinhos poético-filosóficas, na perspectiva do nó complexo arte-comunicação-educação, foi uma passagem relativamente simples. Tive a felicidade de ter este trabalho acolhido pelo Prof. Dr. João Cardoso de Palma Filho do Instituto de Artes da UNESP em São Paulo. 2- O que vem a ser esse estilo de quadrinhos? O que as tornam especiais? Por que poético-filosóficos? Penso que sejam três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica como as que têm sido realizadas no Brasil: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos. Elas apresentam, de maneira explícita em sua arte, a intenção de que seja feita uma reflexão poética, enquanto aberta criativamente ao contínuo movimento da vida, e filosófica, enquanto provocação a um pensar aprofundado sobre a condição humana. As histórias em quadrinhos poético-filosóficas, no Brasil, tendem a ser apresentadas em histórias curtas que, muitas vezes, rompem com a linearidade convencional das narrativas em quadrinhos usando, para tanto, de criativos recursos seja no traço do artista seja em novas propostas de utilização dos requadros. Quando se fala da intencionalidade poética aqui é no sentido sugerido por Edgar Franco, que se inspirou no pensamento de Aristóteles, isto é, um olhar que, sem perder o pé do chão presente e estando aberto aos influxos criativos da imaginação, consegue vislumbrar as coisas que ainda não são e trazê-las para a fruição e reflexão do leitor ou leitora. Da mesma forma, quando se fala na intencionalidade filosófica não se está pensando aqui na filosofia que está presente na academia ou então em qualquer obra de arte, mesmo naquela que se destina a fazer rir ou a ajudar a passar o tempo. Nem se está pensando naqueles autores que, como Alan Moore, por exemplo, conseguem construir reflexões filosóficas em quadrinhos já consolidados no mercado formal. E muito menos se está pensando naqueles trabalhos que usam a linguagem das histórias em quadrinhos para introduzir ao pensamento de filósofos já consagrados. Quando se fala de intencionalidade filosófica a referência é ao desejo, que explicitam os autores poético-filosóficos, de provocar uma reflexão mais profunda sobre a condição humana em seus leitores e leitoras e, para isso, compartilham suas visões sociais, oníricas, subjetivas, cósmicas, políticas e espirituais por meio da linguagem dos quadrinhos. Os quadrinhos poético-filosóficos são uma criação cultural que dialoga com as questões existenciais do homem contemporâneo com um grande repertório de temas como: o sofrimento humano, a morte, a esperança, o destino, o ego encapsulado em si mesmo, a mente humana, o feminino materno, a consciência planetária, a consciência cósmica, o imediatismo e o consumismo, a ciência, a religião, as instituições sociais, o autoconhecimento, a tensão entre as polaridades masculina e feminina do ser, a sexualidade, o poder, as lutas e contradições internas do ser humano, a fraternidade, a fratricidade, a evolução dos homens e dos animais, a espiritualidade, o inacabamento humano e a construção da liberdade. O que a meu ver as torna especiais é o fato de que são uma forma de partilhar os dilemas e problemas da condição humana adotando, para tanto, a linguagem dos quadrinhos que combina as visualidades dos desenhos e das palavras. Trazem a densidade da condição humana numa obra artística que tem uma grande capacidade de comunicação.
É muito discutível o que seja genuinamente nacional. Todas as culturas estão sendo sempre perpassadas por múltiplas influências que se diferenciam de acordo com o tempo, o espaço e as necessidades que elas próprias apresentam. Em relação aos autores que criam histórias em quadrinhos acontece a mesma coisa. Normalmente antes de se tornarem desenhistas e criadores eles foram consumidores deste artefato cultural. Tiveram várias referências diante dos olhos, fizeram escolhas, elegeram preferências que, certamente, ao se sintetizarem com suas experiências de vida influenciaram e inspiraram o seu trabalho criativo com as histórias em quadrinhos. Estas influências, contudo, não eliminam a originalidade de um grupo de autores brasileiros – num primeiro momento, e de modo especial, Flávio Calazans, Gazy Andraus e Edgar Franco – que resolveu expressar pela arte dos quadrinhos as próprias visões de mundo e compartilhá-la com os leitores e leitoras que tivessem desejo e disposição de sentir-pensar com eles. Esta originalidade manifesta-se não apenas na maneira como utilizam artisticamente os recursos gráficos da linguagem dos quadrinhos para comunicar seus temas-visões-reflexões, mas também na transgressora forma editorial que utilizaram para serem vistos e lidos. Entendo, desta forma, que os quadrinhos poético-filosóficos, são sim uma criação brasileira, mesmo que possamos ver aí influências de autores estrangeiros, de modo especial os europeus, como Caza, Moebius e Druillet. Gazy Andraus gosta de lembrar, por exemplo, que o estilo de histórias curtas, uma opção criativa, tem relação também com a dificuldade material e financeira de desenhar histórias em quadrinhos no Brasil, isto é, as condições materiais da existência em terras brasileiras também estão na origem do processo criativos dos autores poético-filosóficos. 4- Há um tempo publicou três artigos ligados a sua nova tese. Dois deles destaca artistas brasileiros engajados nesse estilo de HQs, Edgar Franco e Gazy Andraus. Por coincidência, ou não, ambos são professores universitários, doutores e pesquisadores. Há realmente algo de comum que os relacione? O que acha dessa "coincidência"? Ambos são docentes-pesquisadores e artistas. Para o campo das histórias em quadrinhos esta dupla faceta gerou algo muito rico, pois eles criam histórias em quadrinhos e, além disso, estudam, pesquisam e escrevem no campo. Gazy Andraus certamente diria que isto é uma expressão das novas necessidades que se constituem em torno de novos paradigmas, ou seja, se em nossa cultura ocidental o paradigma dominante, de viés cartesiano, privilegiou as atividades racionais e lógico-discursivas do hemisfério esquerdo do cérebro, os paradigmas emergentes privilegiam o diálogo entre os hemisférios direito e esquerdo. A sensibilidade a esta nova exigência está fazendo surgir novos tipos de pesquisadores e de artistas. Pesquisadores que são também artistas, artistas que são também pesquisadores. Edgar Franco e Gazy Andraus, mas não apenas eles, navegam nestas duas ondas: aprenderam a intuir, a sentir, a olhar o todo e a criar artisticamente, mas aprenderam também a delimitar, aprofundar e analisar dentro das exigências da rigorosidade científica. Penso que aprender a lidar com esta dupla possibilidade é algo que, do ponto de vista das re-criações culturais e quando estiver mais difundido a um número cada vez maior de pessoas, poderá significar transformações positivas para nossa vida individual e coletiva. Leia os artigos de Elydio dos Santos Neto no Bigorna ao clicar aqui. *Entrevista originalmente publicada na revista Conhecimento Prático Filosofia # 24, da editora Escala Educacional. |
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