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Por Elydio dos Santos Neto 30/05/2010 Há alguns anos atrás, por ocasião de uma das reuniões da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), em 2006, li um artigo de uma pesquisadora da área de educação e comunicação que iniciava com a seguinte epígrafe, de autoria de Heidrun, na obra Writing a Woman’s life: (...) Só podemos viver nas histórias que temos lido ou ouvido. Vivemos nossas próprias vidas através de textos. Podem ser textos lidos, cantados, experimentados eletronicamente ou podem vir de outros, como os murmúrios de nossa mãe dizendo-nos o que as convenções exigem. Qualquer que seja a forma ou o seu meio, essas histórias nos tem formado a todos e são elas que devemos usar para fabricar novas ficções, novas narrativas. A beleza deste texto é que ele nos remete àquilo que, a mim parece, seja uma verdade: nós produzimos as histórias de nossas vidas a partir das histórias que lemos, ouvimos, assistimos, presenciamos, cantamos, declamamos, pintamos, desenhamos. Ou seja, somos seres das narrativas para os quais são de fundamental importância o desejo, a imaginação, a razão, a emoção e a reflexão. Por meio também destas potencialidades humanas criamos histórias e também nos criamos, nos fazemos, sempre de forma inacabada. Assim sendo as histórias em quadrinhos também são uma das fontes de inspiração para a constituição das vidas daqueles que as lêem. Obviamente que não apenas os quadrinhos ajudam a definir as histórias das vidas de seus leitores. Seus conteúdos, trabalhados e transformados pelo imaginário de cada leitor, vão se somando a outros eventos, reflexões e escolhas advindos das experiências com a família, os amigos, a escola, a religião e outras atividades da sociedade em geral. Na combinação entre os aspectos que vêm das experiências externas e das condições internas de cada sujeito, cada um vai se formando, vai se constituindo. No artigo acima referido, de autoria de Adriana Hoffmann (disponível aqui), há um depoimento de uma jovem leitora de mangá que ao mesmo tempo em que afirma a concepção de que somos seres das narrativas, caminha em sentido contrário ao de uma série de afirmações de pais e educadores que vêm nos mangás nada além de violência. Eis um trecho do depoimento da jovem leitora, tal como publicado no citado artigo, no qual ela fala de princípios dos quais se apropriou a partir da leitura dos mangás: Juliana: Quando vc começa a ler aquilo, aquelas imagens, aquelas cenas, aquele amor que ta ali, aquela amizade que ta ali, aquela idéia que ta ali e as pessoas que estão ali lutando por um ideal que tentam realizar a todo custo que, no caso, é combater o bem e o mal, o bem vencer o mal sempre, mesmo que não seja verdade na vida real... Aquela paixão pela vida que aquelas pessoas têem é que me interessa, mesmo que seja desenho, mesmo que seja uma revista sabe? Te dá mais... Como posso dizer? Bagagem. Te dá muita coisa. Eu posso dizer que metade das coisas que eu sou, que eu entendo da vida, minha, principalmente, vem dali, muitos princípios que eu tenho hoje vem dali. E, em outro trecho, fala sobre como a leitura das histórias dos mangás “passam experiência” para ela: Juliana: Quando eu leio o Mangá eu procuro ali dentro uma filosofia (...). O mangá pra mim quando o personagem é feito ele é construído como um ser humano, que pode ter poderes especiais, pode saber lutar como ninguém no universo, ele pode ser o detentor de todos os poderes, mas ele é um ser humano, ele tem vida, ele tem passado, tem presente, tem problemas, ele sofreu, ele ta crescendo, ele tá ali se desenvolvendo junto com vc, ele tem uma história pra te contar, ele ta te mostrando a vida dele, então vc leia... Em seu depoimento, simples, mas esclarecedor, Juliana nos mostra como a leitura das histórias em quadrinhos, no caso os mangás, vão auxiliando a construção de sua vida, de seus valores, de sua filosofia, de sua visão do mundo. Penso que esta leitura não só lhe passa uma experiência, mas se constitui para ela, verdadeiramente, numa experiência. Quando falo em experiência aqui é no sentido que lhe atribui o filósofo da educação espanhol Jorge Larrosa, para quem “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. Quando leio o relato de Juliana penso que ela faz com a leitura dos quadrinhos uma experiência no sentido que afirma Jorge Larrosa: a leitura do mangá a toca, a atravessa, introduz novidades em sua vida, a faz pensar e a ajuda a fazer escolhas. Penso ainda que para boa parte dos leitores de histórias em quadrinhos isto também aconteça. Possivelmente muitos nunca se deram conta deste tipo de acontecimento nos termos que aqui coloco e, talvez, continuem lendo as histórias em quadrinhos, fazendo uma experiência com elas, sem consciência plena, até porque isto, por certo tipo de cultura que foi difundida contra os quadrinhos, para a grande maioria talvez seja algo impensável. Algum leitor que esteja me lendo neste momento poderá avaliar que eu estou levando os quadrinhos muito a sério. Não sei. Pode ser. Não sou contra a leitura leve e desinteressada. Não sou contra ler por ler, para passar o tempo. Eu também faço isso. Mas, lembremos, somos seres complexos: conscientes e inconscientes. De repente, numa leitura desinteressada, algo pode nos fisgar e a experiência é feita. E a experiência traz novidades, sejam quais forem, para nossas vidas. Novidades que vão ajudando a nos constituir como seres humanos. E tudo começou com uma leitura simples e desinteressada. É... Histórias em quadrinhos participam do processo de constituição e de invenção de quem as lê. NOTA: Se alguém se interessou pelo artigo do filósofo Jorge Larrosa pode acessá-lo aqui.
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