Tirem a poeira dos cérebros, caros leitores, é hora de usar mais que os dez por cento de nossa cabeça animal! Porque esta semana quem está na área e o mais intelectual dos quadrinhistas do Brasil. Ele mesmo, Edgar Franco! E naturalmente sua lista dos dez gibis mais importantes não podia ser como a da maioria dos mortais. Edgar tem um paladar tão complexo, sofisticado e anacrônico (sim, porque Edgar vive no ano de 3010 e não em 2010) que realmente não é qualquer gibi que vai satisfazer seu gosto apurado. Duvidam? Pois vejam a seguir que loucura a lista dos gibis que fizeram a cabeça futurista de Edgar, o incrível quadrinhista do século 30!
Os Dez Melhores Gibis de Todos os Tempos
Por Edgar Franco
1 – Os Olhos do Gato (1978) – Jodorowsky & Moebius
Quando li essa HQ em uma livraria da cidade de Bauru, interior de São Paulo, tinha 18 anos e desenhava quadrinhos há 6. Meu trabalho já caminhava para uma linguagem poética, experimental. No entanto, o impacto de vislumbrar aqueles quadrinhos soberbos de página única, os ângulos de câmera inusitados, a fluidez do traço de Moebius e a poeticidade pungente de Jodorowsky marcou de maneira indelével a minha formação como artista e ser humano. Ao terminar de ler o álbum meu coração estava disparado e eu tinha lágrimas nos olhos. A história escrita por Jodorowsky misturava dor profunda, visceralidade, miséria humana e glória. Trata-se de um trabalho único, que jamais poderia ser traduzido para outra linguagem artística com o mesmo impacto. O chileno Jodorowsky é um dos maiores criadores do século XX, um visionário, delirante como devem ser os gênios, pai da psicomagia que vislumbra a arte como forma de cura! Moebius, grande artista, em minha opinião jamais conseguiu superar o impacto dos desenhos dessa obra em seus trabalhos posteriores.
2 – Homo Eternus (1993) – Gazy Andraus
Da vasta e seminal obra do quadrinhista poético-filosófico, ou fantástico-filosófico – como prefere Andraus – selecionei esse álbum que compila a primeira fase de sua produção, incluindo alguns de seus trabalhos mais emblemáticos como as HQs Hurizen, Retorno Evolutivo e Pedra Bruta. Andraus é um dos principais representantes desse gênero único de quadrinhos no panorama das HQs mundiais, as HQs poético-filosóficas, caracterizadas por serem curtas, experimentarem com a linguagem dos quadrinhos e também incluírem intencionalidade filosófica. Gazy é influenciado por visionários como William Blake e Khrishnamurti, seus quadrinhos, muitas vezes desenhados diretamente à tinta sem prévio rascunho, buscam referência também na arte taoísta e nos koans. Nos conhecemos em 1993, devido à semelhanças que percebemos em nossos quadrinhos, depois descobrimos que nascemos na mesma cidade, Ituiutaba, MG. Essas semelhanças levaram-nos a lançarmos o fanzine “Irmãos Siameses” (1993). E desde então considero Gazy meu irmão na arte e nunca deixei de ter grande respeito e admiração por sua obra impactuante e única.
3 – L’âge d’Ombre (1997) – Caza
Numa tradução para o português, que infelizmente nunca aconteceu, esse álbum teria um nome como “Os Tempos Ominosos”. Gazy Andraus e Flávio Calazans ao lerem uma de minhas HQs em 1993 comentaram que ela lembrou-lhes os trabalhos do quadrinhista francês Caza, pseudônimo de Philippe Cazamayou. Gazy Andraus que já havia me apresentado à obra soberba do quadrinhista francês Druillet, mostrou-me também trabalhos de Caza. Fiquei muito entusiasmado com a linguagem poética de suas HQs, trabalhos curtos, com ambientação de ficção científica e fantasia que buscavam na mitologia, nos contos de fadas e em imagens arquetípicas do inconsciente coletivo a base para estruturação dos roteiros. A identificação foi imediata, pois meus quadrinhos costumavam ter como base as mesmas fontes. O desenho de Caza é delirante, soberbo, onírico, e esse álbum em especial compila a série de HQs curtas dedicadas aos personagens “Oms” - seres alienados, egoístas, individualistas - uma metáfora do homem de classe média urbano. Em cidades fantásticas situadas num mundo imaginário, Caza reconfigura histórias míticas como a do Cavalo de Tróia, a lenda da Mandrágora, o Flautista de Hamelin, entre outras. Até hoje os artistas com os quais mais me identifiquei como criador foram Gazy Andraus e Caza.
4 – Guerra das Idéias (1987) – Flávio Calazans
Dono de uma mente brilhante e de uma capacidade singular de conectar informações e recontextualizar conteúdos na forma de narrativas quadrinhizadas, Calazans criou um grande impacto sobre minha percepção do potencial comunicativo das HQs. Guerra das Idéias é um passeio brilhante e revelador pela história do ideário humano desde os primitivos Neandertais até a era dos cyborgs. Com HQs curtas com um poder de síntese singular, o autor - com bom humor e lirismo – interpreta as grandes lições de filosofia da história humana. O trabalho já teve múltiplas reedições pela editora Marca de Fantasia. Não só esse álbum como toda a obra quadrinhística de Calazans merece ser conhecida por aqueles que ainda não tiveram o prazer e privilégio de lerem seus quadrinhos.
5 – A Febre de Urbicanda (1985) – François Schuiten & Benoît Peeters
Obra de ficção científica de contornos steampunk, esse álbum compõe a série As Cidades Obscuras. O trabalho de arte do belga Shuiten - com seu desenho anguloso, detalhado, preciso, cenas que parecem filmadas por grande angulares e as referências visuais que são ao mesmo retrô e modernistas - cria a atmosfera perfeita para o roteiro intrigante e rico do francês Peeters. Ele narra a história de uma cidade projetada nos moldes modernistas que é assolada por um fenômeno inexplicável que irá modificar completamente a percepção espacial e as relações interpessoais entre seus habitantes. Um conto com profundas raízes críticas ao urbanismo modernismo que mereceu um estudo detalhado em meu livro “Histórias em Quadrinhos e Arquitetura” (Editora Marca de Fantasia, 2004).
6 – New York A Grande Cidade (1981) - Will Eisner
O norte americano Eisner talvez seja tão importante para os quadrinhos quanto o russo Eisenstein foi para o cinema. Nesse álbum sua poeticidade e a doce fragilidade do espírito humano são retratadas com maestria em histórias curtas, quase hai-kais em quadrinhos. Os experimentos narrativos de fusão ou abandono de requadros, interconexões inusitadas entre os desenhos, fluxo narrativo construído sobre efeitos de luz e sombra, entre outras inovações geniais pautam todo o trabalho, demonstrando que o potencial narrativo das HQs tem muito ainda a ser explorado. Ao sintetizar suas visões sobre a existência humana no contexto de uma grande urbe, em flashes sobre a vida de seus habitantes, Eisner conseguiu elevar ao máximo o potencial de sua arte, por isso considero esse álbum sua obra mais relevante.
7 – Hipocampo 4ª Ocorrência (2010) – Antônio Amaral
O piauiense Amaral é o maior iconoclasta das HQs brasileiras, seu trabalho singular, vanguardista, visceral, alucinado, delirante e soberbo não é palatável para qualquer um. Para compreender a dinâmica e força de sua obra é necessário que o leitor esteja disposto a desvencilhar-se de todos os preconceitos e de uma visão de quadrinhos baseada na narrativa seqüencial tradicional. O universo poético e filosófico de Amaral trafega por uma cosmogonia singular, na qual o traço de contornos surreais e expressionistas integra-se a um texto aparentemente automático – repleto de referências que vão da física de partículas ao regionalismo piauiense criando uma cosmogonia única. Sua obra merece ser conhecida, apreciada e estudada. A série de álbuns Hipocampo reúne seus trabalhos mais importantes e o artista continua ativo, pois lançou em 2010 o número 4.
8 – Gen – Pés Descalços (1973) – Keiji Nakazama
Que me perdoe Art Spielgeman e seu fabuloso Maus, mas nenhuma história em quadrinhos sobre a tragicidade da guerra conseguiu tocar-me tão profundamente como Gen. A narrativa tradicional dos quadrinhos é usada com maestria e eficácia pelo grande quadrinhista japonês Nakazama. A construção das personagens é soberba, é impossível não nos identificarmos com sua dor e sofrimento. O lirismo do autor chega ao paroxismo e eu confesso que me derramei em lágrimas em vários momentos da leitura da HQ. O desenho é eficaz e só, mas isso não impede a história de manter seu impacto. Um exemplo brilhante de como as HQs têm um potencial narrativo singular.
9 – Revistas Mestres do Terror & Calafrio (Editora D-arte – década de 1980)
Estes dois títulos de terror fizeram parte de minha juventude, foi por causa deles que eu comecei a acreditar na possibilidade de criar histórias em quadrinhos. Ali estão os primeiros grandes artistas dos quadrinhos que admirei. Nunca gostei de HQs de super-heróis e as primeiras revistas que comecei a colecionar foram esses títulos gerenciados pelo quadrinhista Rodolfo Zalla. Em suas páginas conheci e passei a admirar profundamente a arte de mestres como Mozart Couto, Shimamoto, Flávio Colin, Rodval Matias e Flávio Colin. Deslumbrei-me com o desenho soberbo - uma de minhas grandes influências até hoje - do genial Jayme Cortez. Ao ver uma de suas HQs estampadas na revista senti um estranhamento inicial que transformou-se em admiração, entendi o poder expressivo do traço autoral e nunca mais me esqueci dessa lição.
10 – Revista Mandala (Editora Marca de Fantasia – de 1995 a 2001)
Esse título, uma iniciativa pioneira da Editora Marca de Fantasia no panorama brasileiro, até o momento foi a única revista em quadrinhos dedicada ao gênero poético-filosófico. Em seus 13 números, Mandala - inicialmente chamada Tyli-Tyli - apresentou trabalhos inéditos de importantes nomes da HQ poético filosófica. Tendo como base os quadrinhistas Flávio Calazans, Gazy Andraus e eu, a revista abriu também espaço para HQs de artistas seminais como Joacy Jamys, Luciano Irrthum, Rosemário, Al Greco, Nuno Nisa, entre outros. Infelizmente a maioria dos números está esgotada e seria importante e interessante se a editora lançasse um álbum compilando as edições para que outras pessoas tenham contato com esse rico material.
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