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O melhor filme de Quadrinhos de todos os tempos
Por Gonçalo Junior
16/10/2009

A primeira frase que escrevi quando pensei em falar da versão para as telas de Watchmen, de Alan Moore, nesta coluna, foi o título. Quase sempre, faço exatamente o contrário: preocupo-me com o texto e deixo o título para o final. No primeiro momento, coloquei uma interrogação, como se fosse uma pergunta: O melhor filme de Quadrinhos de todos os tempos? Mas logo desisti diante da certeza de que queria fazer uma afirmação. Além disso, porque se trata apenas de uma opinião, a minha, claro. Portanto, Watchmen é, para mim, o melhor filme já feito a partir da obra original dos Quadrinhos. E quem quiser que diga o contrário, democraticamente. Ou pode falar algo do tipo: não é bem assim. Ou esse cara é um idiota. Tudo bem que o primeiro Homem-Aranha é excepcional. O segundo, ainda melhor. Mas gosto muito da terceira parte da série - justamente o que mais apedrejaram. Cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan, lançado no ano passado, não conta porque dos Quadrinhos originais praticamente só existem os personagens. E nada resta ali da graphic novel/minissérie de Frank Miller, a não ser um conceito bem diluído no modo de tratar mocinhos e bandidos – na verdade, é muito mais A Piada Mortal, de Moore.

E curto muitas outras produções made in comics, como o último Superman – que muita gente detestou ou simplesmente ignorou por causa do que saiu na dita mídia especializada – cadernos de cultura e revistas de cinema. E não tenho temor em dizer que The Spirit não é tão ruim quanto dizem, pois tem momentos legais, num esforço não bem sucedido de Miller em ser o mais fiel possível à linguagem visual de Will Eisner, pelo menos. Experimente chegar até o final e veja se não tenho alguma razão. Adoro Demolidor, acho que ganharia outro impacto se tivesse vindo antes do Homem-Aranha. Este simplesmente o atropelou. Elektra? Tenho uma cópia em casa mas ainda não vi. Mulher-Gato? Fui com uma expectativa que era a pior possível e, salvo a afetação dos requebros de Halle Berry, foi divertido. As cobranças e os desafios estabelecidos pelo alto padrão técnico e narrativo de Sam Raimi com Homem-Aranha eu compararia ao que Alan Moore, Miller e Neil Gaiman fizeram na década de 1980 com as graphic novels, quando deixaram o mercado de super-heróis atordoado – até hoje, aliás, não se recuperou, enquanto o bravo Universo Marvel patina rumo à “manganização”.

O que achei dos muitos filmes da série X-Men? Infantis demais, porém vibrantes e instrutivos também – prestam um valor inestimável como panfletos contra o preconceito e pelo respeito às diferenças, principalmente físicas (dos mutantes). Quarteto Fantástico? Os dois são uma deliciosa diversão infantil, como tinham de ser – os Quadrinhos vão além disso? O filme mais com linguagem dos Quadrinhos curiosamente não veio exatamente de um personagem dos gibis, mas roubou com maestria e genialidade seu estilo: Darkman – Vingança sem Rosto (1990), de Sam Raimi. Muito bom. Assim como uma pérola perdida que veio em seguida do mundo dos comics, Rocketeer (1991), de Joe Johnston. O lançamento em DVD para locação e Blue-Ray (locação e venda) de Watchmen é uma boa oportunidade para se ver ou rever e, quem sabe, fazer justiça ao filme de Zack Snyder, o genial diretor de 300. A primeira consideração a fazer: não leve a sério o que a patota que faz resenhas de filmes no Brasil – resenha é algo mais raso e superficial do que poderíamos chamar de crítica – porque não tenho dúvidas de que muitas dessas pessoas não gostam de Quadrinhos, acham uma arte menor, infantilóide e os desprezam como entretenimento.

Entre 1997 e 2003, escrevi sobre cinema para a Gazeta Mercantil e convivi com muitos deles, cansei de ouvir comentários preconceituosos sobre gibis. Lembro-me bem das sessões para a imprensa – que chamam de "cabines" – do primeiro X-Men. Antes da exibição começar, percebi que parte da turma nada sabia sobre os personagens dos Quadrinhos, por causa dos comentários nada amistosos e preconcebidos (não é ridículo essa coisa de super-herói fantasiado, com capa e cuecão?). E, não deu outra, isso ficou bem claro quando publicaram seus textos. Não todos, claro. Sempre que vou ao cinema, costumo firmar minha opinião no momento em que sobem os créditos e eu saio da sala. Ou seja, importa a impressão que o filme deixou ao seu final e não apenas as sensações que tive durante sua exibição, a empolgação que toma conta de mim ou o desânimo em determinadas passagens. Isso me dá segurança para expressar e fundamentar minhas opiniões – quando escrevia sobre o tema ou quando comento com amigos. É comum, portanto, que mude radicalmente de ideia nesses momentos. O que vejo lá dentro não continua a me impressionar lá fora. E vice-versa.

Com Watchmen foi diferente. Todas as sensações causadas pela projeção acabaram superdimensionadas assim que deixei a sala. Sai extasiado, anestesiado, embriagado pelo filme (e continuo assim até hoje, como pode ver nestas linhas que seguem). E ficaram o que me pareceram duas certezas: aquela era, sem dúvida, a melhor adaptação feita até hoje dos Quadrinhos para o cinema – a mais fiel, a mais coerente; e que o filme de Zack Snyder possui a intensidade rara para se tornar, com o passar dos anos e das décadas, um filme cult, a celebração de uma era, de uma época, de um tempo. A primeira impressão que vem à mente é a dramaticidade humanista que se alcançou na tela – trata-se de uma história de solidão e desespero em seus múltiplos sentidos e significados – e que Alan Moore queria dar à sua obra. Isso foi competentemente intensificada na tela por Snyder, vale insistir. Sem o infantiloidismo politicamente correto das séries Homem-Aranha e X-Men, Watchmen não chega a ser um filme sobre super-heróis exclusivamente para o público adulto ou para uma parcela letrada, culta, acadêmica e de outros rótulos, por causa da complexidade narrativa e temática de Moore. 

Não é também uma obra inacessível àqueles não iniciados em leituras mais densas e até complexas. Assim como os Quadrinhos, o longa preserva todo o rico arsenal de elementos subjetivos para se pensar o universo dos seres especiais e trazê-lo para perto do público, ao humanizá-lo. Mas consegue fazer pensar até mesmo num nível mais superficial, o que não quer dizer rasteiro ou tolo. Ou, em último caso, filme pode ainda simplesmente ser visto como mero entretenimento, uma grande aventura cinematográfica. Snyder dá uma dramaticidade que segue equilibrada até o fim, com personagens inesquecíveis e momentos arrebatadores – como no enterro do Comediante, quando travellings fazem a câmera sair da cova, promover panorâmicas e passeio pela chuva fina do cemitério, enquanto o caixão baixa o túmulo e se ouve The sound of silence, de Simon and Gurfunkel, originalmente do filme A primeira noite de um homem (1967), de Mike Nichols. De arrepiar. Creio que esse é um momento envolvente e fundamental do filme. E faz pensar o quanto os Quadrinhos têm servido de fonte para rejuvenescer o cinema, combinado com outras formas de expressão artística como a música – várias canções do filme já tinham sido citadas e indicadas pelo próprio Moore no texto original.

Ao se manter integral à obra de Moore, Snyder dá vida àquela que é a criação maior dos Quadrinhos desde a sua invenção, um século atrás. Assim, o diretor explora com ênfase, porém de modo sutil, a desconstrução do mito americano do super-herói – que o autor fez quase simultaneamente com Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas). Como no épico Era uma vez no oeste (1968), de Sérgio Leone, e O homem que matou o facínora (1962), de John Ford, Watchmen emociona a plateia porque consegue estampar no rosto de cada um de seus protagonistas a sensação hiper-realista de medo e insegurança que extrapola o dom da perfeição (como super-herói) que lhe aparece nos momentos de ação. Embora Rochchash (Jackie Earle Haley) roube a cena na hora final, todos os personagens foram construídos para o cinema com maestria. Cada um cumpre bem a sua função e o fato de serem quase todos atores desconhecidos só ajuda a dar forma humana aos personagens dos Quadrinhos. Não quero ver Arnold Schwarzenegger no papel de Dr. Manhatan, como se buscou por tanto tempo. Billy Crudup está perfeito, dramaticamente perfeito. O mesmo vale para Comediante (Jeffrey Dean Morgan), Coruja (Patrick Wilson), Espectral (Malin Akerman). Não consigo imaginar Brad Pitt como Ozymandias. Mathew Goode está excelente.

Os super-seres que vivem num mundo proibido e decadente, idealizado por Moore, se são quase sempre imbatíveis, mostram-se vulneráveis no momento de enfrentar relações, de confessar suas angústias, desejos e desilusões. Escondem também seu lado grotesco e falho, como o Comediante, um impulsivo brutamontes capaz de estuprar uma super-heroína. E esta, de se apaixonar por ele depois. Ou mesmo de não conseguir atender a uma linda mulher na cama – o que é feito com grande sutileza e sem caricaturar a situação na relação entre Coruja e Espectral. Assim, se possuem poderes e senso de justiça, os Watchmen são falíveis em suas vidas privadas e, portanto, revelam-se humanos. Esse é o grande mérito do filme: deixar de lado o espetáculo cinematográfico – aqui, em doses comedidas -, a favor do humanismo dos personagens. Parece-me um equívoco buscar em Watchmen repetições do esforço de se compor a atmosfera dos Quadrinhos ao compará-lo com Hulk, Dick Tracy ou Sin City. Não tem nada a ver com nada. O compromisso de Snyder é com a arte de Dave Gibbons - e não com uma suposta fórmula que Hollywood teria criado para ganhar dinheiro com comics -, inclusive os enquadramentos e angulações. De Moore sobrevive seu teor criativo e genial.

O problema maior, creio, está no fato de que Watchmen chegou aos cinemas com muito atraso, depois de uma enxurrada de filmes e continuações de adaptações dos Quadrinhos. E esse talvez seja um motivo importante para que não tenha sido também bem recebido pela imprensa especializada. O longa demorou demais para ser feito, passou por quase duas décadas de especulações. E acabou sugado para o rótulo genérico “mais um filme vindo dos Quadrinhos”. As reações negativas ao filme são incoerentes e pouco fundamentadas. Pior, são cheias de clichês e preconceito às Histórias em Quadrinhos. A indústria do cinema não costuma arriscar suas superproduções com filmes mais elaborados. Se acontecesse com Watchmen uma versão mais “fácil”, idiotizada e caça-níquel, teria sido um massacre não só da crítica como dos especialistas e estudiosos em Quadrinhos. Felizmente, Snyder conseguiu estabelecer uma obra autoral e honesta. Brigas com a DC à parte, talvez em sua intimidade – e jamais admita isso publicamente – Moore deve ter aplaudido a transposição dos seus Quadrinhos para a tela, se já viu o filme. De minha parte, fica a impressão de que daqui a cem anos Watchmen permanecerá como um belo retrato de uma era, dos tempos dos super-heróis, do tempo em que buscávamos na fantasia soluções para problemas e medos que nós mesmos criamos.

É compreensível que as novidades estabelecidas por X-Men e pelo Homem-Aranha tenham sido banalizadas em outras experiências que os seguiram. Mas a má vontade existe contra os Quadrinhos e o arrebatador O Cavaleiro das Trevas é um bom exemplo disso: por mais que tenha sido obrigada a admitir que se tratava de um bom filme, todo o foco da crítica foi desviado pela a tragédia pessoal do ator que interpreta o Coringa (Heath Ledger) e não à competência do diretor Christopher Nolan em fazer um grande filme. A história do cinema e das artes de modo geral costuma ser construída pelo correr dos anos, pelo distanciamento das tendências e dos preconceitos. Só então a arte se torna cristalina, perene, eterna. Watchmen pode não se estabelecer numa categoria tão elevada, mas será o melhor exemplo da primeira década do século XXI, quando o cinema se reinventou a partir das Histórias em Quadrinhos. Quem viver, verá. Em tempo: vale a pena ter como fonte de pesquisa e leitura o livro Super-heróis no cinema, de André Morelli. Um trabalho completo, honesto e bem feito graficamente sobre o tema.

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