"As divisões entre Quadrinho nacional e estrangeiro estão acabando. É Quadrinho e pronto!"
Ele está para o Quadrinho Brasileiro como a banda Sepultura está para o Heavy Metal! No final dos anos 80, ainda molecão, ele se meteu sozinho, com a cara e a coragem, no então desconhecido mercado de Quadrinhos norte-americano e acabou se tornando o primeiro quadrinhista brasileiro a desenhar para a DC Comics. Mais que isso, acabou abrindo e asfaltando a estrada por onde dezenas de outros artistas passariam depois. Se hoje desenhar títulos como X-Men e Superman é uma realidade rotineira e normal para os artistas brasileiros, esse fato se deve à coragem do mato-grossense Marcelo Campos, que transformou em realidade o que, há vinte anos atrás, não passava de sonho dos mais distantes. E o mais curioso, foi justamente um artista que NÃO tinha esse sonho que o transformou em realidade para todos! Marcelo nunca sonhou em ser quadrinhista profissional, muito menos em fazer uma carreira internacional. No entanto, quis o destino que Marcelo executasse o papel de vanguarda e pioneirismo que estava reservado pra ele. Assim como nos anos 70 houve uma “invasão“ de desenhistas filipinos no mercado norte-americano, que revelou ao mundo artistas soberbos como Alfredo Alcala, Rudy Nebres, Ernie Chan e Nestor Redondo, entre outros, na década de 90 coube a Marcelo comandar a “invasão brasileira” a este mesmo mercado. Nossa invasão verde-amarela, por sua vez, consagrou mundialmente mais um punhado de artistas soberbos como Ivan Reis, Luke Ross, Renato Guedes, Roger Cruz e muitos outros, além, é claro, do próprio Marcelo. Entrevistar Marcelão foi um grande prazer, pois, apesar de sua inquestionável importância para o mercado de HQs, o caboclo permanece o mesmo sujeito modesto e “simplão” de seus primórdios. Dono de um traço e arte-final muito singulares e expressivos, algo como um “Flávio Colin High-Tech”, mesmo com todo sucesso profissional e material, Marcelo não mudou, não ficou chato nem metido a besta. Ao contrário, como ele mesmo cita na entrevista, seguiu o sábio conselho do personagem Forrest Gump e “cresceu sem deixar de ser ele mesmo”! Aliás, cresceu MUITO! Desenhou incontáveis páginas e dezenas de títulos para as principais editoras americanas, criou seus próprios personagens, fundou a primeira grande escola-estúdio de Quadrinhos de São Paulo, a Fábrica de Quadrinhos, saiu da Fábrica e agora comanda a Quanta Academia de Artes, escola que já nasceu grande e onde reuniu o corpo docente mais invejável do Brasil. Enfim, há tanto para se falar do sujeito que qualquer olho de matéria, por mais extenso, fica pequeno pra ele. Portanto, é melhor passar a bola logo para o craque! Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha, Marcelão! E sai da frente que o caboclo chuta bem!!!
Você já nasceu numa família ligada às artes. Você acha que o homem é sempre produto de seu meio? Acredita que você seria um desenhista se não tivesse nascido nesse ambiente?
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Traço mais antigo e mais detalhado de Marcelo Campos (clique para ampliar) |
Eu cresci cercado por todos os tipos e gêneros de música, literatura e cinema. Entre os tipos de literatura, estavam os Quadrinhos. Sou o mais novo de uma família de quatro irmãos (entre eles uma irmã) e todos na família gostavam de artes. Meus pais, meus avós, tios, tias, primos, primas... todos tinham essa ligação! Quadrinhos era uma coisa muito normal em casa. Meu irmão Ricardo lia muita HQ, de todos os tipos: Crepax, Tintim, Marvel, Grilo, Heavy Metal, Tarzan, Spirit, Príncipe Valente, DC, enfim, de tudo. Então nunca tive preconceitos com nenhum gênero e aprendi a ler todos eles e entender a intenção e a estética de cada um. Assim como na música. Meus pais adoravam as
big bands e os musicais clássicos de Hollywood, assim como a MPB. Meu irmão mais velho adorava Bossa Nova e os pioneiros do Rock, como Jerry Lee Lewis, Elvis, Buddy Holly, etc, tanto do rock internacional quanto do nacional. Minha irmã curtia a Motown, Burt Bacharach, Carpenters, Wilson Simonal, Jorge Ben, e depois toda aquela coisa da
Disco Music. Meu irmão Ricardo já curtia Led, Purple, Yes, King Crimson, Jethro Tull, Floyd, Gentle Giant, Novos Baianos, Jorge Mautner. E ainda tinha as influências dos meus primos com o Jazz, muita filosofia, o estudo das religiões e mais Quadrinhos. Meu avô paterno era tabelião e curtia escrever poesias, meu avô materno era comerciante e tocava bateria. Então era isso, sempre li de tudo, escutei de tudo, assisti de tudo (risos)! Não acho que o homem seja inteiramente produto do seu meio, mas não posso negar que todas essas influências somaram parte importantíssima do que sou. A arte sempre esteve presente na minha vida mas eu nunca pensei em trabalhar com arte, simplesmente aconteceu por eu já ter um contato com isso. Eu já tocava, eu já desenhava, eu já escrevia, então, quando rolou de trabalhar com isso, pra mim não foi exatamente uma conquista, mas sim uma consequência normal. Eu já fazia essas coisas desde criança e o fato de eu começar a ganhar dinheiro pra fazer isso foi só um
plus.
Aliás, se você não fosse desenhista, o que gostaria de ser? Quais as outras "vocações secretas" do Marcelo Campos (risos)? Cara, eu nunca pensei em ser nada (risos)! Sério!... Eu não tinha a menor idéia do que eu queria ser. Eu achava muito estranho tudo isso, como ainda acho, aliás. Tem uma frase no filme
Forrest Gump que eu gosto muito e sempre cito ela,tem uma hora que um personagem pergunta pro Forrest o que ele vai ser quando ele crescer e ele responde: “
Ué, eu não vou ser eu mesmo?!?”. É meio isso, pra mim. Eu não faço a menor idéia do que eu poderia ter sido. Eu só sei que eu curtia escrever, desenhar, tocar, ouvir música, ler, ver filmes. Fora isso eu não sei de mais nada (risos)!
Você tocava guitarra na adolescência e tinha uma banda com seu irmão. Como foi essa fase da sua vida? Você tentou ser profissional? Tem alguma demo gravada? Aliás, você ainda faz um sonzinho de vez em quando? Na verdade eu tocava baixo. E fazia uns
backing vocals também. A banda foi mais uma coisa de brincadeira, eu nem sei tocar baixo de verdade (risos). Eu acho que tinha (ou ainda tenho) um bom ouvido. Eu tirava de ouvido todas as músicas que curtia, tocava os discos que gostava de cabo a rabo. Mas era uma coisa instintiva, absolutamente sem técnica. E eu não queria que deixasse de ser assim. Não queria que ficasse sério. É como quando eu ia tentar entender o que as bandas que eu curtia estavam falando nas letras das músicas, na maioria das vezes as letras eram imbecis e aí dava uma estragada na música, saca? Aí eu decidi que não queria entender porra nenhuma (risos), só queria sacar a sonoridade da coisa e pronto! Mas a gente não levou a banda profissionalmente, não. A gente tocou em uns bares e em umas festas e foi só! Chegamos a compor umas coisas, e eu acho que o meu irmão Ric tem alguma coisa guardada lá na casa dele, eu não tenho nada. Mas eu curtia as músicas que a gente compunha. Eu ainda tenho um baixo aqui em casa, mas nunca pego nele... nem sei porquê (risos).
Eu sei! É dó dos vizinhos, né (risos)?! Mas, diga, quais são seus ídolos na música? Nossa, cara... Beatles, Who, AC/DC, Ramones, The Cult, The Cure, Oasis, Pretenders, Prince, Smashing Pumpkins, Stooges, The Clash, David Bowie, Nine Inch Nails, Pixies, Radiohead, Velvet Underground, Iggy Pop, Durutti Column, Joy Division, King Crimson, White Stripes, The Verve, Bauhaus, B-52's, Nick Drake... cara, tem coisa pra cacete!… Devo ter esquecido gente pra
c@§@%§o aqui (risos)!…
E nos Quadrinhos? Olha, vou tentar falar os principais: Jack Kirby, Ziraldo, E.C. Seger, V. T. Hamlin, Flavio Colin, Chester Gould, Hergé, Walt Simonson e Daniel Torres. Esses com certeza foram os principais em termos de estrutura de traço! Gosto também do Guido Crepax e do Will Eisner como estética e narrativa de HQ. E pra mim Bill Waterson e Charles Schulz são geniais em tudo, mas acho que gosto tanto deles que sempre evitei ser influenciado demais por eles.
Vamos voltar mais ainda no tempo. Quando você decidiu que iria viver do desenho? Quando exatamente começou sua carreira de desenhista? Olha, teve um período da minha vida que eu desenhei muito, tinha entre 13 e 16 anos. Nesse período eu vim pra São Paulo pra estudar desenho de tanto o pessoal da minha família encher o saco com isso. Entrei numa grande escola de artes daqui, e um belo dia o professor me chamou no canto e me disse pra sair da escola porque eu já tinha um estilo próprio e se eu ficasse ali eu iria estragar tudo. Achei aquilo o fim do mundo!!! Como é que um cara me diz uma
m&r%@ dessas?!? Eu tô ali pra estudar, pra aprender, e o cara me dá uma dessas?!? Fiquei puto e decidi parar de desenhar por uns dois anos! Aí fiz uma HQ de terror com um roteiro do meu irmão. Ele viu um tipo de concurso rolando numa revista antiga, da editora Maciota, acho que a revista chamava
Mundo do Terror, algo assim. A gente curtia
Kripta, A Tumba de Drácula, Monstro do Pântano (antes do Alan Moore),
Heavy Metal, essas coisas. E o Ric mandou essa história pra esse concurso. A história foi aprovada e os caras da editora começaram a pedir mais histórias e tal. E me mandavam cheques pra que eu fizesse essas histórias! Aí eu pensei: “
Uau,cheque é bom!!! É bem legal!!! (risos)”. Foi assim que eu comecei.
Como foi sua fase na Editora Abril? Lembro que você fez capas para A Saga De Thanos e O Novos Titãs. Que mais você fez lá? Quais as boas lembranças daquela época?
A Abril veio logo depois disso. Um cara da Abril, o Jotapê, viu meus trabalhos e me perguntou se eu não queria fazer um teste pra entrar lá. Eu fiquei meio mal, porque eu morava no Rio de Janeiro com o Ric e curtia muito viver lá. Aí eu fiz o teste mas não acreditava que seria chamado. E me ferrei, os caras me chamaram(risos)! Aí mudei pra São Paulo pra morar com a minha irmã. No começo eu não desenhava quase nada, as únicas coisas que eu fazia eram umas caixas malucas com umas linhas meio futuristas, onde os editores de textos colocavam recados e cartas de leitores, coisas assim. Eu saí da Abril depois de um ano e fui trabalhar com animação, num tipo de subsidiária da Hanna-Barbera daqui do Brasil. Fiz umas coisas pros
Smurfs, Snorkels, Flintstones da Era Dourada e uma série que eu acho que nem foi exibida, chamada
ClownTown, se não me engano. Depois fiquei fazendo uma porrada de coisas, desenhei, arte-finalizei e fiz até roteiros pra
Xuxa, Faustão, Angélica, Sérgio Mallandro, He-Man, Bravestarr, Thundercats, Centurions, Sectaurs, Galaxy Rangers, etc. Estes materiais foram produzidos pra Abril e Globo. Fiz desde caixas de brinquedos dos
Comandos em Ação até enfeites de mesa para festas de crianças do Palácio dos Enfeites. Fiz ilustração e até escrevi contos pra fotonovelas! Foi uma época
punk, trabalhava demais! Depois comecei a fazer muita publicidade (
storyboards na maioria) até que fui chamado de volta pra Abril, dessa vez como Diretor de Arte. Foi nessa época que fiz essas capas que você citou. Nessa época eu fiz também algumas mudanças em algumas HQs, coisas que eram censuradas e tinha que mudar. Fiz um lance desses na fase do Frank Miller no Demolidor, na
Queda de Murdock, transformei a seringa com a qual a Karen Page ia se drogar, numa navalha para ela cortar os pulsos. Fiz isso também na série
Camelot 3000, que teve cenas de lesbianismo censuradas e na
Guerras Secretas, da Marvel, que tinha situações que ainda não podiam aparecer por motivo de cronologia dos personagens.
A-RÁÁÁÁÁÁ!!!! Então foi VOCÊ que censurou aquelas gostosas transando e o baque da Karen Page!!! Finalmente, vinte anos depois, descobri o culpado (risos)!!! Quinze chibatadas (risos)!!!
(Risos)!!! Eu não! Não tive culpa de nada, só cumpri ordens (risos)! Mas eu tenho boas lembranças de lá, lembro quando a minissérie Cavaleiro das Trevas chegou lá em 1986, eu acho, fui eu que fiz a separação dos filmes. Lembro que achei aquilo incrível!!! Pra mim era como se a DC tivesse dado o Batman pra um artista da Heavy Metal trabalhar!!! Todo mundo achou aquilo sério e adulto, mas eu achei que era a coisa mais pop com super-heróis que já havia lido. Era uma coisa bem rock&roll!!! Acho que os super-heróis perderam o bonde de se tornar uma coisa muito cult e pop no final da década de 1960 e também na década de 1970. Vi em Cavaleiro das Trevas uma possibilidade muito legal pro gênero super-herói, mas a coisa acabou indo pra uma busca pelo realismo que ainda hoje não entendo.
Você foi o primeiro brasileiro a desenhar pro mercado americano via Art&Comics. Foi muita responsa , não foi? Se seu trabalho tivesse ficado uma m&r%@, os gringos nunca mais chamariam um brasileiro(risos). Qual foi o seu primeiro trabalho internacional , afinal?
Foi mais ou menos por aí sim! Eu comecei nos EUA em 1989. Entrei junto com o Watson Portela, que publicou lá o material que ele já havia publicado aqui no Brasil com o nome Paralelas (nos EUA foi nomeado como Inferno). Eu, pelo que sei, fui o primeiro a publicar, como desenhista, material dos caras, usando roteiro deles. O primeiro trabalho que eu fiz lá foi o Deathworld, uma adaptação dos livros de ficção do Harry Harrison, este escritor é mais conhecido pelos roteiros que fez pra série clássica de Star Trek. Deathworld foi uma maxissérie de 12 edições de 48 páginas cada. As primeiras 5 edições foram produzidas comigo ainda trabalhando na Abril, como Editor de Arte. Eu chegava em casa depois do horário da Abril e ainda ia produzir páginas. Foi uma época muito corrida! E tinha sim esse lance da chamada pra responsabilidade. Cheguei a ouvir esse discurso muitas vezes, que se eu falhasse ia ser f*%@, que ia tudo por água abaixo e tal. Foi complicado sim! O povo gostava de falar que eu era “a escada”, o cara que ia abrir o mercado pros outros virem atrás, saca? Mas foi muito f*%@ mesmo! Quando eu saí da Abril pra me dedicar apenas à produção desses materiais, a Malibu (editora que publicava Deathworld) me ofereceu mais duas séries, Retief and the Warlords (também uma adaptação de uma série de livros de ficção) e Dollman (que era a um tipo de sequência de um personagem criado em filmes B pela produtora Full Moon).
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Superman pra DC (traço atual, bem estilizado) e Thor para a Marvel |
O seu trabalho foi bem aceito pelos gringos e imediatamente abriu o caminho para muitos outros desenhistas. Você se sente, de certa forma, o "padrinho" de toda essa galera que desenha pra fora hoje? Eles te tratam como o grande "Guru Marcelão" (risos)?
Eu não sei se me sinto padrinho, mas eu acho que principalmente o meu profissionalismo teve uma certa importância, sim. Não acho que meu trabalho tinha qualidade naquela época, sabe?! Não gosto de quase nada que produzi lá pra fora, a maioria das coisas que produzi era em um estilo mais “realista” e meu traço natural sempre mais foi pro estilizado. Eu não curtia muito aquilo. Além disso, eu tinha que produzir 56 páginas (duas revistas de 28 páginas cada) de desenho e arte-final por mês, e sozinho! Era insano!!! Não tinha como ficar legal. Mas era aquela coisa de abrir o mercado e eu não podia recusar trabalho naquele momento. Então, fiz o que achava que tinha que fazer. Eu acho que tem um pessoal que tem respeito por todo esse meu esforço, cara. Eu acho que rola algum tipo de respeito por mim.
Mas você também foi criticado por algumas pessoas na época, não? A exemplo do João Gordo, te chamaram de "traidor do movimento"(risos). Por que você acha que alguns reagiram assim?
Eu fui muito criticado, MUITO (risos)!!! Era até engraçado. Na época eu comecei a aparecer na TV e jornais e esse lance de ser o primeiro brasileiro a desenhar pro exterior acabou chamando um pouco a atenção das pessoas que curtem Quadrinhos. Por conta dessas entrevistas eu fui convidado a fazer palestras em universidades, centros culturais, escolas, eventos pelo Brasil todo. E sempre tinha uns caras nas platéias que levantavam e me xingavam de vendido (risos)! Eu achava engraçado ver pessoas com esse tipo de visão, que eu até respeito, mas...sei lá, eu entendo esse tipo de reação, tem o pessoal que batalha contra o avanço de Quadrinhos estrangeiros aqui no Brasil. Os custos de compra dos direitos de publicação desses materiais aqui são infinitamente mais em conta do que produzir algo aqui. E, aí, é claro, vale mais a pena pra uma editora comprar um material desses e publicar do que ter que pagar a produção de um material 100% nacional. É complicado apostar numa coisa que você não tem idéia se vai ou não fazer sucesso. Mas claro que seria legal se alguém com grana apostasse no Quadrinho nacional, já que se um personagem nacional der certo, o dono do “produto” vai ganhar, não só a grana da publicação desse material, mas de todo os outros produtos linkados a ele,como brinquedos e merchandising em geral. Caso contrário a gente sempre vai ficar nessa e não vamos construir um mercado nacional legal. Então, eu acho que esse tipo de reação era de pessoas que me viam como um brasileiro se rendendo ao “esqueminha” das editoras comprarem “lixo enlatado” dos EUA e ajudando a impedir o mercado brasileiro de crescer. Mas sinto que esse tipo de reação era mais relacionado ao que é produzido pelos EUA, achava engraçado não ter muito isso com materiais europeus, por exemplo. Talvez alguns achassem que, de uma certa maneira, os europeus estão meio que juntos com a gente contra o avanço do material “lixo comercial” dos EUA. Pois eu via todo mundo metendo o pau na Marvel e DC invadindo o Brasil e nunca vi ninguém falando nada contra Asterix ou Tintim. Por isso sempre achei esse tipo de reação meio “sem-noção”, saca? E tinha também o pessoal que cada hora falava uma coisa, por exemplo, quando eu entrei nos EUA me falavam que eu poderia até ter entrado, mas que seria impossível eu me manter lá. Aí eu acabei me mantendo bem e então começaram a falar que eu poderia até me manter no mercado, mas que nunca entraria em uma editora grande. Aí eu entrei na DC e começaram a falar que eu podia até entrar numa grande editora, mas que nunca conseguiria pegar um título importante. E aí eu peguei a Liga da Justiça e começaram a falar que eu podia pegar um título importante como a Liga, mas que não era um título de primeira grandeza e que nenhum brasileiro conseguiria pegar um dos títulos “top de linha”. E aí o Roger Cruz pegou os X-Men e aí finalmente essa lenga-lenga parou (risos)!!!
Afinal de contas, você considera que desenhar pra Marvel e DC seja Quadrinho nacional também? Ou Quadrinho Nacional é outra coisa?
Não acho que isso seja Quadrinho nacional, não. Não como a indústria ainda percebe as coisas. São artistas nacionais publicando seu trabalho em um ou mais setores da linha de produção dos quadrinhos norte-americanos. É quadrinho americano com brasileiros trabalhando como artistas reconhecidos. E é claro que tem um puta valor,assim como o quadrinho nacional, que é aquele produzido aqui por artistas daqui. Mas, na verdade,isso tá ficando cada vez mais complicado de falar, né? Porque o mundo tá ficando muito pequeno,cara, e acho que esse tipo de divisão, de estabelecimento do que é o que, e de onde é, tá acabando. Hoje em dia é quadrinho e pronto! Tem artistas de todos os países na Marvel e na DC,escrevendo, desenhando.Muitos em uma mesma edição!Hoje em dia é assim,por isso eu acho que,na real mesmo, essas divisões já eram!
Você criou o Quebra-Queixo pra provar que era capaz de ter seu próprio personagem, 100% nacional? Aliás, por onde ele anda? Ele tá meio sumido, não?
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O personagem próprio mais conhecido de Marcelo Campos: o grandalhão Quebra-Queixo |
Não, eu criei o Quebra-Queixo porque fazia parte de uma porrada de estudos sobre gêneros e construções de personagens que eu gostava de fazer,de integração de referências. Eu curtia estudar essa necessidade de expressão através de coisas criativas com mitologia, signos, metáforas, essas coisas. O QQ foi um exercício divertido,despretensioso, com muitas referências trash em uma época em que as HQs de super-heróis estavam ficando sérias e “realistonas” demais pro meu gosto. Estamos finalizando um terceiro álbum do QQ agora, que eu vou apresentar pra Devir em breve, pra ver se eles ainda têm interesse em manter o material vivo. Se tudo der certo, a gente lança ele em breve.
Eu li uma entrevista sua onde você dizia que tem pouquíssimos gibis na sua coleção particular. No fundo, você não quer ficar muito preso aos quadrinhos?
Eu tinha muito gibi antes, europeus, americanos, de vários gêneros, mas nunca tive coleções completas, sabe? Tipo do número 1 ou 200 (risos)! Comprava só o que tinha alguma coisa que eu curtia. Hoje eu tenho só uns 20 gibis, eu acho(risos)... tipo Calvin, Peanuts, coisas assim. Doei quase tudo o que tinha pra gibiteca da Quanta. Mas eu estou muito ligado aos Quadrinhos, isso não tem jeito! Mesmo que eu já tenha feito animação, ilustração, publicidade, foram sempre os Quadrinhos que mais projetaram o meu nome. Isso não vai mudar. Mas, como eu disse antes, eu nunca pretendi ser um desenhista de Quadrinhos, nunca lutei por isso. Eu fui profissional quando os trabalhos rolaram, fui sério. Mas a coisa simplesmente aconteceu! O lance de não querer ficar preso aos Quadrinhos é mais uma visão das pessoas sobre mim do que outra coisa. Pra mim isso tá muito tranquilo. Eu não tou mais afim de fazer Quadrinhos, pelo menos não como fazia antes. Se a vida me permitir não ter mais que fazer isso, eu não faço mais. Hoje eu estou mais interessado em cuidar da Quanta, mas isso não significa que eu não goste mais de Quadrinhos. Eu sei que falar essas coisas pode soar estranho pras pessoas que são apaixonadas por HQs, sei que este tipo de declaração pode ter muitas interpretações. Eu tenho Quadrinhos, tenho DVDs de filmes que curto, tenho CDs das bandas que eu curto, tenho livros, enfim, são coisas que fazem parte da minha vida, como comer, dormir, etc. Mas eu nunca fui tão fã assim de nenhuma dessas coisas a ponto de, se trabalhasse com uma delas e um dia tivesse que parar, morreria por isso, saca? São só coisas que eu curto, que faço, mas não é a minha vida! Já teve gente que brigou comigo por eu falar isso (risos)! Acho que essas pessoas ficam irritadas pelo fato de eu simplesmente não ser tão apaixonado por uma coisa que elas são, e pelo fato de eu ainda ter a oportunidade de trabalhar e viver disso, e mesmo assim, decidir não querer mais (risos)!
Quantas páginas você fez para o mercado americano e quais títulos você considera seus melhores trabalhos nesse mercado?
Putz, cara... que pergunta (risos)!!!!!! Eu não tenho a menor idéia de quantas páginas fiz pros gringos, eu fiz tanta coisa, realmente não faço idéia! Além disso, eu não tenho nada do que publiquei lá, não guardei nada! Então não tenho nem como fazer as contas (risos)! Também já vendi ou dei todos os originais (risos). Mas eu curto um pouco mais o que fiz pra Marvel, na época que fiz um gibi chamado Uncanny Origins. Nesse título eu pude fazer meu próprio traço e minha arte-final. Ainda assim, tem muitas coisas que eu não curto nesses materiais. Geralmente eu gosto de dois ou três quadros em cada HQ que faço. O resto não curto não. Fiz umas edições pro Thor também, que eu curti do mesmo jeito e umas do Marvel Adventures. Teve uma série que produzi pra uma editora extinta, chamada Cosmic Comics, do Roger Corman, num título chamado Death Race 2020, que eu também gostei bastante. Mas tudo assim, gosto de dois ou três quadros de cada edição.
No auge dessa sua produção, quantas horas você chegou a trabalhar por dia? Qual foi seu recorde de páginas num dia?
Ah, eu cheguei a virar três, quatro dias direto várias vezes. Eu não me lembro de quantas páginas já cheguei a fazer em um único dia, a coisa era tão corrida que não dava tempo de prestar atenção nisso. Talvez eu já tenha feito umas 4, 5 páginas de desenho e arte-final em um único dia.
Li numa entrevista que você chegou a adoecer de tanto trabalho. Quando você resolveu dar uma virada na sua mesa?
Isso rolou sim. Foi complicado! Eu tive um problema cardíaco que foi meio sério. Tive que ficar uns seis meses sem trabalhar naquele ritmo. Foi mais ou menos aí que tirei um pouco o pé do acelerador. Mas, mesmo depois disso, tive uns piques parecidos com aquele que falei, de trabalho. Poucas vezes toquei um só título, geralmente desenhava (sem arte-final) dois títulos por mês. Minha produção, num ritmo “tranqüilo”, pros EUA eram mais ou menos 44 páginas de lápis por mês! Teve épocas na Fábrica de Quadrinhos, quando eu era o “diretor” do estúdio, que tive esses piques também.
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Cão e Gata, série de Marcelo Campos publicada no livro da Fábrica de Quadrinhos |
Por falar em Fábrica de Quadrinhos,você fundou a “escola-estúdio” com o Vilella, o Cariello e o Roger Cruz. Como foi esse período? Quanto tempo essa fase da Fábrica durou e por que vocês racharam?
No começo da Fábrica eram eu, Cariello, Roger, Vilela e Jotapê. O Jota foi o primeiro a sair, depois o Roger saiu, depois o Eduardo Schaal entrou na sociedade e aí, um tempo depois, eu e o Cariello saímos da Fábrica por razões de direcionamento de vida e da maneira como pensávamos as duas empresas. Porque a gente tinha a Fábrica de Quadrinhos Escola de Artes e a Fábrica de Quadrinhos Estúdio de Artes. Eu decidi sair do estúdio e o Cariello veio junto, o Vilela e o Schaal ficaram com o estúdio e a Fábrica escola deixou de existir. Aí eu e o Cariello abrimos a escola Quanta, o nome Quanta veio porque eu curto muito ler sobre física quântica e tal. E algum tempo depois o Cariello saiu da sociedade da Quanta, é claro que rolaram discussões, mas o principal foi um lance de direcionamento mesmo. O que cada um esperava pra sua vida e pra empresa.
A Fábrica te deu experiência pra fundar a Quanta? E agora, você ainda tem sócios ou finalmente é o "poderoso Chefão”(risos)?
A Fábrica foi uma das melhores escolas que já fiz! É incrível como aprendi coisas sobre como tocar uma empresa do jeito que eu quero e penso, como aprendi coisas sobre a vida e sobre mim mesmo! Foi incrível! Eu agradeço demais por essa experiência, foi uma das mais ricas da minha vida! Eu tenho uma nova sócia na Quanta Academia e também no Quanta Estúdio, minha ex-mulher, a Fati Gomes. Mas ela tá mais no Estúdio. Na Academia, a maioria é minha, então eu toco as coisas sozinho mesmo. A gente divide as coisas mesmo é no Estúdio! Mas eu tenho aqui na Quanta um time muito f*%@ de trabalho! Pessoas que eu confio demais e não tomo decisão nenhuma sem conversar com os caras antes. Alexandre, Vanks, Tainan, Fujita e Weberson, esses caras sempre me dão uma luz! É claro que as decisões finais são minhas, mas estes caras são sempre o meu grilo falante. Além disso, minha namorada, a Carol, também sempre me dá uns toques importantes, me ajuda a pisar no chão. Porque eu sou meio maluco, sabe (risos)? Não tenho o perfil “empresário”. Já a Carol tem uma cabeça incrível, é lúcida demais, é até assustador (risos)!!!
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Tira psicológica de Marcelo Campos. Faceta pouco conhecida do artista (clique na imagem para vê-la ampliada) |
Você ainda faz HQs pro mercado americano ou agora se dedica exclusivamente a formar alunos? Você é tipo aqueles craques de futebol que ralaram muito, ganharam uma grana e viraram técnicos, né (risos)? (risos) Eu parei em 2005 ou 2006, não lembro mais. Meus últimos trabalhos foram como arte-finalista do Ivan Reis no
Superman e no
Lanterna Verde. A última coisa que eu fiz, e que foi a que mais me agradou até hoje como profissional de Quadrinhos, foi um álbum chamado
Talvez Isso... – lançado pela editora Casa 21 em 2007. Foi a primeira e única coisa que produzi em que eu realmente me vejo integralmente nela, saca?
Você é muito modesto (risos). Qual sua rotina na Quanta? Eu trabalho lá das 8h30 da manhã até às 10h30 da noite. Essa é minha rotina (risos)!!! Mas eu tiro um tempo pra viver também,não entro mais nessas loucuras de tornar meu trabalho minha vida!
A Quanta é onde você sempre quis chegar? Você está no melhor momento da sua vida? Com o tempo, fui curtindo a idéia de dar aulas, de ensinar arte e de construir um estúdio. Foi assim que chamei os primeiros caras pra montar uma escola comigo: o Roger e o Cariello. Foi quando acabou rolando a Fábrica. Mas, a idéia toda acabou indo pra lugares que eu não curtia e a idéia inicial que eu tinha foi se distanciando, saca? Aí, com o tempo, eu fui vendo que tava a fim de sair e montar a coisa segundo minha visão inicial. E isso é a Quanta hoje. É claro que tou muito longe do ideal, tocar uma empresa não é fácil, principalmente pra um maluco como eu, sem muita veia pra empresário. Mas com certeza eu curto a Quanta, a idéia e o conceito dela! Eu acho que ela tem qualidade e propósito dignos. A Quanta é um trabalho longo, difícil, mas que pra mim tem muita importância! Hoje minha vida é qualitativa. Estou tentando fazer o que quero, do jeito que quero e como posso fazer, tentando equalizar vontade com realidade. Vou tentando fazer da melhor maneira, me fixando na qualidade das coisas. Hoje vejo a vida de uma maneira bem diferente. E isso tudo é resultado de uma vida de experiências interessantes,tanto profissionais como (e principalmente )pessoais. Já vivi muitas coisas, bem mais complicadas do que as confusões todas que rolaram nos bastidores da minha vida profissional. E olha que tem muitas histórias estranhas e difíceis nessa área, cara! Mas isso eu não conto, não (gargalhadas)!... O que importa é que tou vivendo um momento especial na minha vida. Aprendendo e vivendo com uma pessoa incrível que eu amo demais!
(cantando) ”É o amoooorrr, que mexe com minha cabeçaaaaaa...(risos)” !Que lindo!.. Mas,me diga, pra você, qual o futuro das HQs? Elas se tornarão animações e o papel será substituído por telas digitais? Eu acredito que já existe um espaço virtual bem bacana para as HQs, desde computador até celular, só que ainda não é tão popular ou explorado. Mas acho difícil isso substituir o papel. Sempre existirão os “saudosistas” que vão preferir o papel.
Você construiu muita coisa e abriu muitos espaços. Ainda falta algum sonho pra você realizar? Cara, eu tou trabalhando e vendo o que dá pra fazer. Não faço planos demais.Claro que ainda tem coisas que quero realizar e tudo mais, mas a gente vai levando na boa, né?! Um dia de cada vez.
Pra encerrar, diga quem é Marcelo Campos e qual sua importância pras Histórias em Quadrinhos? (risos) Cara, eu tou apenas trabalhando e tentando fazer o melhor caminho que puder na minha vida. Acho que sou um cara que tenta ser justo e bacana com as pessoas, e que tenta fazer o melhor sempre. E se eu tenho alguma importância pras HQs, isso quem vai julgar são as pessoas! A minha própria opinião sobre minha importância é ....SEI LÁ (risos)! Como eu disse lá no começo, ”
eu só quero ser eu mesmo”!!!
O Bigorna.net agradece a Marcelo Campos pela entrevista, concedida em 12/6/2009