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Crítica: Budapeste
Por Ruy Jobim Neto
29/05/2009

As duplas audições de Budapeste

Leonardo Medeiros e Gabriella Hámori em cena de Budapeste

Walter Carvalho gosta de vasculhar os sentidos. Em Janela da Alma, a visão era contemplada. Em Budapeste, que estreou sexta-feira passada nos cinemas, soma-se a ela a audição. O filme é sobre duplos. Até a piada protagonizada pelo autor do livro de onde vem o roteiro, Chico Buarque, pertinho do final, brinca com essa referência. E Walter tece essa ligação com maestria, com uma bela construção fílmica em cima de roteiro bem amarrado de Rita Buzzar. O mais bonito não é somente o filme, na tela, mas a platéia, que entope cinemas para ver e ouvir a si própria. Não se fala aqui exatamente só de Budapeste, mas desse reflexo, dessa paquera que parece já se consolidar num belo relacionamento, o cinema brasileiro e seu público interno. É imensamente gratificante ver salas cheias – coisa que era uma luta danada nos anos 80. E não por causa de falta de qualidade, e sim devido ao pré-conceito básico estabelecido de que cinema brasileiro e pornochanchada eram a mesma coisa. Esse fantasma parece ter ido embora. Espera-se que para bem longe. E sem acompanhante.

Voltemos a Budapeste. Pai e filho, Walter (na direção) e Lula Carvalho (na direção de fotografia) se entendem perfeitamente. Um completa o outro. Walter tem uma lista magnífica de assinaturas em nosso cinema (Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado são dois deles), Lula já começou a dele faz um tempinho (Feliz Natal, de Selton Mello, é bom exemplo). Ambos mostram que um filme é, sim, cor e câmera. Quando o filme inicia, a voz de Leonardo Medeiros (ótimo, por sinal, no papel do “ghost-writer” José Costa) abre o filme – ele é o narrador, para nossa sorte – e já nos declara que Budapeste é amarela. Isso determina o modo de olhar de Lula Carvalho, na objetiva da câmera que ele mesmo opera e dá ao filme essa consistência. Melhor nem falar o chavão “tal pai, tal filho”, mas que ambos são talentosos, disso já não temos dúvida há bom tempo. Esses dois sabem o que vêem.

Leonardo Medeiros e Giovanna Antonelli em Budapeste

Daí o olhar da câmera, que se transfere para a platéia. O Rio de Janeiro tem uma luz tão enebriante, tão nossa, que quando o filme troca de locação, é preciso que o olho do espectador se acostume por alguns segundos e identifique: ops, mudou de cidade, agora não é mais Budapeste, é o Rio. Olha-se. A luz entra na retina. Pronto. Estamos noutro ambiente. Mas eis o brinquedo cinema que nos engana: podemos estar também perfeitamente em Paulínia, em algum estúdio no pólo cinematográfico do interior paulista. A cidade tem participação no filme, que é co-produção húngara-portuguesa-brasileira. Há figurantes de Paulínia em Budapeste. O filme brinca com isso. A música é de Leo Gandelman, os temas são lindos, e tem uma faixa cantada na voz da cantora húngara Emese Toth (nesse idioma, o húngaro ou magyar, língua linda, incompreensível, misteriosa, a língua que o diabo respeita, como nos informa a maravilhosa Gabriella Hámori, a atriz que interpreta Kriska – mas deixemos pra falar de Kriska daqui a pouco). O violoncelo de Jacques Morelenbaum desconcerta de tão belo. O filme tem pedigree. Até a deliciosa brincadeira da canção Feijoada Completa, de Chico Buarque ganha ares duplos: ora é cantada em português, na língua materna, ora em húngaro. Melhor, impossível.

As mulheres do filme são uma coisa à parte. São lindas, todas. Desde a esposa de José Costa, na pele moreníssima de Giovanna Antonelli, uma mentira que ele vive num dia-a-dia cheio de pequenas irritações e descasos (atentem para a figura do filho do casal, o gordinho), até às musas dos escritores dos quais ele é fantasma, e que permeiam as mentiras verdadeiras de José Costa. Uma delas é Paola Oliveira, em sua estonteante nudez frontal. E é nesse meio tempo em que, entre escritos falsos e verdadeiros, entre lançamentos de livros e noites de autógrafo – esse ambiente por onde José Costa trafega como se fosse um coadjuvante de si mesmo, onde deveria ser o protagonista, como ele nos é (hein?) – aparece a maravilhosa Kriska. Interpretada pela não menos linda e branquelíssima Gabriella Hámori, uma atriz com carreira no cinema de seu país e que trabalha também em televisão. Kriska é uma professora de húngaro. Nada mais perfeito. A aparição de seu personagem ilumina o filme, e isso o diretor de fotografia percebeu ao primeiro instante.
 

Gabriella Hámori e Leonardo Medeiros em Budapeste


O desafio de ator para Leonardo Medeiros foi o de aprender realmente  a outra língua, a falar frases em húngaro, coisas que ele decorou com um ouvido atentíssimo e dizia no filme sem ao menos saber como aquilo se construía frasalmente. Outra coisa: é sabido que o próprio Chico Buarque, ao escrever o romance, jamais tinha pisado em Budapeste, cidade que é destrinchada pela câmera, dá vontade de passear nela. Uma cena emblemática mostrada no filme foi a da passagem de uma balsa por baixo de uma ponte, em pleno rio Danúbio. Uma estátua enorme de Lenin - esculpida para esta cena, acrescenta-se - é levada nesta balsa, e parece apontar, com o dedo indicador, alguma direção. Não importa qual. José Costa, como anti-herói, ou duplo herói, está disposto a seguir o rumo.

O filme tece, então, com cada coisa a seu tempo, o seu alinhavar. Nós, a platéia, ganhamos José Costa como fio condutor, e vemos sua transformação enquanto ser humano. Ele vira outra coisa, não mais aquele primeiro. Uma cena próxima do final do filme parece que dá essa costura, melhor não citar aqui para não contar o que acontece. O roteiro de Rita Buzzar é intrincado, como é a cabeça de José Costa, mas é essa a beleza de Budapeste. Entre legendas e piadas de tradução de uma língua para a outra, é no duplo que o filme se revela. Agrada bastante e deslumbra. Duplo é o prazer de ver este cinema que se abre para o mundo.

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