O criador do Ran é um cara muito legal! Salvador Messina está sempre sorridente e pronto para receber os amigos e é mais um arquiteto que seguiu para os Quadrinhos. Ele trabalha com ilustrações para palestras sobre Direito, para elas ficarem “mais claras, agradáveis”, enfatiza ele. Nesta entrevista realizada por e-mail, ele comenta sobre sua carreira, seus tempos de estudante no “colégio dos padres” e na FAU/USP, suas criações e trabalho. Mais profundamente, ele também discorre sobre espiritualidade e a necessidade do ócio.
Vamos começar do começo: como surgiu seu interesse por Quadrinhos?
Como a maioria de nós, eu era um garoto devorador de gibis... lia de tudo, toda linha Disney, Gasparzinho, Bolota, Brotoeja, Riquinho, Bolinha e Luluzinha, Pimentinha. Nacionais eu tinha o Bidu, o Horácio, e o Pato da Ciça, na Folha de SP, Carlos Estevão no Cruzeiro, e Ziraldo. Depois veio uma fase mais “jovem” com super-heróis e revistas de Terror. Asterix, Tin Tin, me mostraram que Quadrinhos podia ter status de Livro. Sem falar que me ligava muito em desenho animado que passava na TV. Claro que eu vivia desenhando. Sempre fui o desenhista da classe.
Quais as de terror que você lia? Kripta e Calafrio?
Sim, entre outras... Creio que havia uma como “Quadrinhos de Terror” que trazia histórias de Frankenstein... eu me amarrava nessas. Lia escondido de minha mãe, que achava que não eram boas referências.
Qual a sua formação?
Sou formado arquiteto pela FAU/USP, mas nunca exerci. No quarto ano resolvi prestar uma faculdade que tivesse mais a ver com o que eu queria fazer e entrei na ECA/USP, onde comecei a me articular com pessoas que queriam fazer Quadrinhos ou cinema de animação.
Estudou com alguém que se tornou famoso na área? Fora você, claro! (risos)
Sou “famoso” em termos, né? (risos)... na Fau fui contemporâneo do Maringoni, Newton Foot, Fábio Zimbres, Líbero Malavoglia. Na Eca, do Cao Hambúrguer... onde participei de seu curta de animação: Frank Punk.
Como foi que você se tornou um profissional de Quadrinhos?
Estudei no Santa Cruz, colégio de padres. Havia aula de Educação Espiritual, em cima de livros do próprio padre/professor... e eu ilustrava com cartuns todos os trabalhos... coloria a lápis... fazia capa... era o maior sucesso! Um dia o Padre Lourenço veio me convidar para ilustrar as próximas edições de seus livros, foi em 1974, eu tinha 15 anos. Acho que ele ofereceu algo em torno de 50 reais por ilustração... nossa!... uma fortuna para mim na época, e ganho através de meu desenho. Vi que poderia ser uma profissão.
Você se lembra o que fez com a grana?
Hehe... eu guardava para gastar nas férias de verão.
Mas, você também trabalha com animação, não é mesmo?!
Então, voltando à ECA, comecei a freqüentar de ouvinte as aulas de animação, dadas pelo professor Marcelo Tassara. Pedi para usar a Table Top super-8 mm (câmera de animação) para algumas brincadeiras em animação... inclusive, meu trabalho de graduação na FAU, foi um desenho animado filmado na ECA. Alguns alunos mais adiantados do cinema, viram meu trabalho e me convidaram para desenvolver um curta metragem em animação com eles. Peguei o roteiro que eles tinham, montei um storyboard e conseguimos um premio estímulo da Secretaria de Cultura do Estado. A ECA nos cedeu espaço em seu estúdio de animação e a Hygashino, uma cobiçada Table Top 35mm japonesa. Chamei um colega de classe, Sylvio Pinheiro, e nós dois animamos os 7 minutos de filme. Depois chamamos outros colegas para ajudar a pintar os acetatos. E assim nasceu o Zabumba que foi selecionado para Gramado. Não ganhamos nada lá... além da experiência, claro. (Confesso que foi um filme amador, mas aprendíamos enquanto fazíamos.) Com o mesmo grupo, fizemos outro projeto no ano seguinte. Ganhamos outro prêmio estimulo para a produção e usamos o equipamento da ECA também. Esse filme ficou mais sofisticado, ganhamos alguns prêmios e ele passou muitas vezes no Lanterna Mágica, na TV Cultura. Era o Masp Movie. O terceiro curta foi Rovena voltado para um público mais infantil. Depois da fase ECA, trabalhei na TV Cultura, onde produzi ilustrações e animações, para a garotada, nos programas infantis Rá-Tim-Bum e Castelo Rá-Tim-Bum. ...foi uma fase muito boa! Aprendi muito! Estou ensaiando voltar à animação...agora com recursos mais tecnológicos.
Seu personagem mais conhecido é o Ran. Como ele foi criado?
Eu estava cansado de animação, muitos desenhos para poucos segundos de história. Eu queria algo que tivesse um retorno mais rápido e fosse mais pessoal, só meu. Voltei a pensar em Quadrinhos... mas não tinha um personagem com que me identificasse... eu ficava fazendo coisas dispersas... até que um dia, em uma aula de Francês, sai o esboço de um sapinho barrigudinho na margem do caderno (eu sempre desenhei nas aulas) e eu me identifiquei de imediato... até o nome, Ran, apareceu sem esforço nenhum... costumo pensar que foi ele quem me encontrou para ser seu desenhista. E as idéias para tira começaram a aparecer como água jorrando em fonte... eu nunca havia imaginado fazer tiras. Então, parte do dia eu animava e dirigia o Rovena e a noite relaxava criando e desenhando as tiras do Ran. Na animação eram 12 desenhos para se fazer um segundo de história... na tira com 3 quadrinhos eu contava uma história inteira... maravilha! Um dia apareceu o Newton Foot na ECA, estava envolvido em um projeto de animação com outro aluno de cinema. Então lhe arranjamos um espaço na sala de animação e lhe dávamos algumas dicas. O interessante é que ele era da FAU e estava envolvido com um grupo de Quadrinhos lá, como o Fábio Zimbres e o Líbero [Malavoglia]. Eles convidaram a mim e ao Sylvio para participarmos da revista Briggitte. E pouco depois, o Newton estaria lançando sua revista Bundha, pela Press e convidou o Ran para participar da #2 (1987).
No mesmo ano, fui convidado para publicar o Ran no Caderno 2, coisa que lhe deu grande visibilidade e abriu portas futuras... como Abril (Skate Mania, Alegria), Jornal do Brasil, Press (Heróis do Futuro), Escala (Comics Book, Super Legal), AOL/Brasil (o Ran na Rede), etc...
Com toda essa visibilidade foi possível licenciar o Ran?
Tive uma boa visibilidade, mas não o suficiente para o mercado de lincenciamento... que exige um espectro de aparição bem maior. Mas é um caminho que vai chegar mais cedo ou mais tarde... principalmente com a exposição na Internet. Por enquanto ainda vou focando no desenvolvimento do personagem.
Você criou outros personagens?
Tenho a Pombita, que está meio parada, mas é uma personagem em que quero explorar um lado feminino. E tenho a linha Eros Magia, adulta, onde exploro temas sensuais, eróticos, fetichistas e até mesmo metafísicos.
Claro, a Pombita! Como fui esquecer dela?! Fala um pouco mais sobre a Eros Magia...
Eros Magia: É um trabalho que sempre levei em paralelo... com mais calma e estudos. Embora a arte seja estilizada, envolve anatomia... é um pouco mais difícil. Eu assino Saleiras, uma brincadeira... como se encarnasse em outro autor, outra sintonia... HEROS... o lado profano, Terra, onde exploro a sexualidade, fantasias, fetiches, bondage, sado-masoquismo... mas, num estilo light...(penso eu). MAGIA é o lado espiritual, Céu, mágico, místico... do homem superior... que de certa forma se expressa no conceito do super-herói. Heros Magia é a comunhão desses lados... nós somos essa dualidade.
Poucos vivem de Quadrinhos no Brasil... Você é um destes privilegiados? Se não, quais suas fontes de renda?
Não, ainda não sou... só vivi de Quadrinhos quando publiquei o Ran na América On Line - Brasil. Eu tinha uma página de humor: o Ran na Rede e também desenvolvia tiras didáticas/humoradas com ele, que davam dicas de navegação e eram enviadas aos clientes pelo departamento de atendimento ao consumidor. Trabalho, também, como ilustrador. Ultimamente tenho feito ilustrações institucionais para empresas, especialmente na área de Direito. Meu irmão advogado, Roberto Messina, tem um escritório especializado em Previdência Complementar, o MML, e resolveu apostar na linguagem de ilustrações nas apresentações que faz por todo o Brasil, para advogados, magistrados, promotores, e técnicos do segmento em que trabalha. Ele desenvolve o tema das palestras, discutimos idéias e eu crio os cartuns ilustrativos. Como resultado, as apresentações ficam mais claras, agradáveis, e vem fazendo sucesso no meio. O mais interessante conto agora: Há 3 anos que eles utilizam ilustrações nas próprias peças jurídicas, uma atitude de vanguarda nesse ambiente mais formal dos Tribunais.
Você tem acompanhado o movimento do Quadrinho Independente. Eu já o encontrei mais de uma vez em lançamentos encabeçados pelo Quarto Mundo. Como você vê este movimento?
Acompanho muito o trabalho dessa turma, gente que faz... hehe... Penso que a mobilização das pessoas, a troca de experiências, o pensar e agir em grupo é um bom caminho para nos fortificarmos e organizarmos um mercado nacional mais atuante e presente. Tem surgido muita coisa boa, de qualidade... bons argumentos, desenhos, arte finais, designs de revistas... o pessoal se dispõe a trabalhar em equipe...cada um dando o seu melhor. E os caras agitam muitos eventos... criam cenas... fazem a HQ aparecer.
No meio deste movimento você criou um fotolog onde posta “RANartes”, que são uma sensação no meio independente! Como surgiu essa idéia?
Foi um grande barato ter montado esse fotolog. Nos lançamentos do 4º Mundo, eu percebi que eles todos tinham fotolog, e o Cadu havia me pedido uma fanarte do Homem-Grilo. Eu fiz uma brincadeira... uma RANarte... o Ran interpretando o personagem do Cadu. Ficou muito gozado e fiz outra para o Will, com o SideralRAN. O legal é que no Terra descobri uma Tribo de quadrinhistas independentes que não conhecia, pessoal que curte e produz super-heróis nacionais... não sabia que havia tanta produção assim. Fui me apresentando a alguns e fazendo RANartes de seus personagens (fanartes são muito comuns nesse meio, todos se presenteiam). Foi um sucesso! Começaram a aparecer desenhistas em meu blog pedindo RANartes para seus personagens... conheci muita gente legal, muitos heróis brasucas...e fiz muito covers com o Ran. É uma brincadeira que funciona! Nessa linha eu já havia criado a “RANLLYWOOD”... álbum com covers de heróis do cinema americano, e a “Seleção bRANsileira” com nossos heróis da chuteira. Mas ter contato direto com os autores dos personagens “coverizados” foi o grande barato!
Com todo esse movimento você não pensa em uma edição especial ou uma revista do Ran?
Sim, penso... mas no momento eu sinto que a grande “Revista” é a Internet. É dinâmica, de rápida atualização e retornos online. Blogs, fotoblogs, orkuts, sites coletivos... tenho me comunicado muito por aí. Como trabalho direto no computador, estou muito online ... faço contatos e "blogo" com razoável freqüência.
Quais seus planos para o Ran?
Continuar criando, produzindo e evoluindo... descobrindo sua vocação para além do Humor. Quero agregar conteúdos compatíveis com educação, cidadania... refletir com a garotada (e adultos tbém) sobre assuntos contemporâneos como meio ambiente, sustentabilidade, consumo, ética... etc. Penso que o Quadrinho não deva ser apenas entretenimento... mas algo que inspire reflexão, conteúdo e atitude nas pessoas.
No momento, além de trabalhar com ilustrações, o que mais você anda fazendo profissionalmente?
Profissionalmente já é o suficiente! Sou também um ser do ócio... me dedico a estudar, observar, seguir a vida como aprendiz. Sou Espiritualista. Acho importante termos essa consciência de sermos também Espírito, metafísicos ...a matéria (é real, claro) é só a ponta do Iceberg. E temos que entender o que representa esse lado Espiritual do Universo. Como pode influir, na prática, no nosso dia-a-dia... não em templos...mas no cotidiano. Espiritualidade é uma tecnologia que pouco dominamos, poucos crêem na existência dessa dimensão. Nossa cultura materialista, frenética, consumista, belicista... está levando o Planeta para um beco de difícil saída. Os sinais já estão aparecendo e algumas pessoas já estão se tocando da necessidade de mudanças. Uma das mudanças deve ser o Boom do Quadrinho Brasileiro!
Obrigado, Ran, ooops!, quer dizer, Salvador pela entrevista!
Eu que agradeço pela oportunidade!
O Bigorna.net agradece a Salvador Messina pela entrevista realizada por e-mail e finalizada no dia 12 de fevereiro de 2009