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Edição que reúne as quatro partes da HQ lançada anteriormente |
Lembro-me que certa ocasião li e não me recordo onde que o grande
Will Eisner confessava que uma das suas maiores ambições nos Quadrinhos era justamente trazer a emoção às pessoas, como a música faz, a poesia, enfim. Desculpem-me os mais estudiosos do grande mestre, se não foi bem isso o que ele disse, porém acredito ser esta a sua intenção. Mas vale dizer que o próprio Eisner estourou nossos corações de emoção, poesia e sinceridade com obras humanas, pungentes, falando do simples, das pessoas comuns, de suas pequenas esperanças. Há uma vasta lista de obras de Eisner que estão sendo lançadas e relançadas e nem é preciso citar esta ou aquela. Tudo vale a pena. Recentemente me vi encharcado (o termo mais exato) por uma outra obra dos Quadrinhos,
Persépolis, da cartunista iraniana
Marjane Satrapi. Lindo. Emocionante. Sincero. Real. Uma História em Quadrinhos verdadeira em sua concepção mais pura de entreter, nos fazer refletir, nos fazer rir e emocionar. O trabalho que já fora publicado em partes aqui no Brasil foi relançado recentemente em sua versão completa.
Confesso que não tive tanto interesse em ler esta obra quando publicada em partes pela primeira vez. Uma dessas faltas de interesse inexplicáveis e principalmente cega, que na maioria das vezes, nos faz perder grandes obras e principalmente nos priva de momentos memoráveis, como disse de uma boa leitura (no caso) e de muita emoção. Mas sempre há tempo. Recentemente em visita a uma livraria aqui de São Paulo com meu amigo-compadre, André Diniz (roteirista de mão cheia, desenhista ímpar e responsável há alguns anos pela minha volta ao interesse em ler bons livros) ao passar por uma pilha de livros, estava lá esta edição completa da editora Cia. Das Letras da obra
Persépolis quando comentei com o Diniz do meu “certo” interesse em ler esse Quadrinho. “
É muuuuito bom!” comentou, com seu bom e velho (porém discreto) sotaque carioca. Pois é, aí nem pensei duas vezes e comprei o livro. Para quem ainda não leu... leia.
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A cartunista Marjane: autobiografia em Quadrinhos com poesia sincera |
Marjane Satrapi é uma iraniana que em plenos dez anos de idade viu seu país virar de pernas pro ar com a revolução islâmica e em pouco tempo a sociedade, seu país regrediu séculos e séculos, com um moral e pensamento de difícil entendimento para ocidentais (e orientais também!). Muito, muito difícil entender inúmeras questões que o regime impôs em uma ditadura ignorante, burra, como todas aliás, são. Dos cabelos soltos das mulheres, por exemplo, ao uso do véu encobrindo toda a cabeça, expondo apenas o rosto, pois, “
os fios dos cabelos das mulheres, possuem raios que excitam os homens!”. E por aí vai. Marjane e sua família, uma família, por sinal, moderna e liberal de intelectuais, onde pessoas como sua avó e sua mãe, mostram-se fortes e de opinião, sofrem com esse regime, rapidamente vêem amigos e parentes desaparecem de suas vidas, mortos pelo regime imposto. Com o início da guerra contra o Iraque no início dos anos 80, a situação piora drasticamente e Marjane e sua família se vêem sem rumo e principalmente sem perspectivas, obrigando a adolescente na época, então, a se exilar na Europa, por opção de seus pais, muito preocupados com o futuro da filha no país. Aí a obra entra dentro de um outro campo, embora resvale no início: se antes era difícil se adaptar ao novo regime em seu país, na Europa, ela era uma estrangeira também tendo que se adaptar a novos costumes, novas pessoas, nova vida. Perspectivas se abrem à jovem Marjane que toma conhecimento do mundo ocidentalizado em tudo que lhe é bom e claro, ruim. Ela acaba voltando para o Irã depois de alguns anos e de momentos difíceis para cursar uma universidade de artes e aí então temos a seqüência final deste trabalho.
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A pequena Marjane tendo que se adaptar aos novos costumes impostos, numa seqüência da animação baseada na HQ |
Com tudo isso, Marjane e sua família se mostram sempre fortes, tremendamente e principalmente humanos. A obra emociona por mostrar, a terrível tragédia em que se instaura no país, com sua mudança cultural, social, política, repressiva e devastadora, com seus governantes agindo e pensando dentro de uma absurda lógica. Porém, e talvez por todas essas questões, como disse, a família da protagonista e a própria não perdem o humor, a ternura, o riso, a alegria. Aí, talvez seja o toque lírico, o toque de beleza que está nesse belíssimo trabalho. O traço de Marjane é simples porém adequado, com estilo. Recentemente estreou aqui a versão animada. Uma hora e meia do filme não abrange as quase quatrocentas páginas do livro. Mas vale muito a pena e de quebra o trilha sonora é ótima. Obras como essa, enfim, e mais algumas outras que têm sido lançadas aqui (tá aí os dois volumes de
O epilético e
Fun Home, por exemplo...), onde o coração e a emoção pessoal, as pessoas e seus momentos infinitamente pequenos, mas grandes em sua dimensão humana, são o grande foco desses trabalhos, devem ser lidas e relidas. É claro, que não se trata de um única possibilidade de se fazer Quadrinhos. Claro que não. Mas nos ensinam, nos mostram que o quanto mais sinceros, mas verdadeiros com nós mesmos formos, identificação imediata com os leitores, alcançaremos, pois afinal é para eles que desenhamos e é com eles que estaremos quando levarem nosso trabalho pra casa.
Falando do que pensamos. Do que vemos. Do que somos.
Como eles também são.