![]() |
![]() |
|
Por Gonçalo Junior 07/01/2008 Caso não tenha lido nada sobre a série ou a visto antes de se tornar o programa mais comentado da TV em 2007, mesmo assim o telespectador menos avisado que assistiu a primeira temporada de Heroes certamente não precisou de mais de cinco minutos do episódio de estréia para perceber a ligação da trama com o universo das Histórias em Quadrinhos. Os personagens lembravam, claro, os mutantes X-Men, criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1963. Ou seja, tratava-se da história de pessoas que, repentinamente, descobriam-se possuidoras de superpoderes como ler a mente, se invulnerável a acidentes, voar, tornar-se invisível, assumir a forma física de outro, atravessar paredes e objetos, etc. Parênteses: Por que não chamar, então, a série de “Super-heroes”? Talvez uma estratégia de marketing para não desacreditar o público mais distante dos gibis que viram o nariz quando se fala em criaturas assim. Ainda no episódio de estréia, descobre-se que Isaac Mendez, um artista que pinta cenas trágicas do futuro movido por heroína, recorre a desenhos de Quadrinhos para compor seus quadros. Não por acaso, em determinado momento, suas telas compõem uma seqüência de comics, devidamente observada por um de seus interlocutores. Logo depois, sabe-se de outra novidade: Mendez é o roteirista e desenhista de um gibi mensal chamado 9th Wonders. Na revistinha, ele narra a trajetória de Hiro Nakamura, um gordinho nerd japonês que existe na vida real, filho de um milionário empresário, fanático por mangás e revistas de super-heróis. Mais adiante, outra surpresa que desfaz a idéia de cópia dos X-Men: o motorista do ônibus não é ninguém menos que Stan Lee, numa de suas muitas aparições como papagaio de pirata – o que costuma fazer nos filmes baseados em seus personagens. E qual o nome do consertador de espadas procurado por Nakamura? Claremont. É uma provável homenagem ao inventivo roteirista das décadas de 1970 e 1980 Chris Claremont, que se destacou principalmente nas aventuras dos X-Men. Micah Sanders, um menino de dez anos que consegue controlar computadores e todo tipo de máquina, é um viciado em comics. Quando preso por um ambicioso gângster, ganha de presente da mutante encarregada de tomar conta dele, nada menos que o número 1 do Surfista Prateado, que ele mesmo observa: aquele precioso exemplar deve ter custado uma fortuna. A mais importante relação entre o seriado e os comics, porém, é uma frase de Mendez que agora me foge sua integralidade. Ele diz mais ou menos assim: que pinta o futuro nos Quadrinhos porque ninguém os leva a sério. Heroes é uma homenagem aos gibis? Uma transposição para a telinha? Uma tentativa de aproveitar elementos das revistinhas para a TV, numa proposta de recriar sua linguagem ou adequá-la a um outro veículo, como tem buscado o Cinema, com seus recursos digitais absurdamente hiper-realistas, sem querer ser redundante? Um tributo a essa forma de comunicação de massa que marcou tanto o imaginário infanto-juvenil no século XX? Para mim, é tudo isso e muito mais. Primeiro, é um híbrido revolucionário do cruzamento de linguagens. Por outro lado, a inovadora série de Tim Kring redimensiona para um novo veículo a fantasia humana de puro escapismo infanto-juvenil que fez tantas crianças sonharem em seus tempos de leitoras de revistinhas com a possibilidade de ser um herói ou super-herói na vida real. Em 1948, o jornalista e editor Roberto Marinho escreveu um artigo de página inteira em seu jornal O Globo para defender seus gibis – O Globo Juvenil, Shazan!, Gibi Mensal, etc – da acusação de que induziam os leitores mirins ao crime e à prostituição. Ele afirmou em carta aberta a seus críticos que os meninos – sim, crianças do sexo masculino – precisavam de heróis como referência para crescer e desenvolver sua virilidade. Nesse aspecto, em Heroes, eles estariam bem representados pelo bobalhão bem-intencionado Nakamura que, sem esconder certa ingenuidade e infantilidade, vê-se diante da missão de salvar o mundo. Longe disso, porém, o seriado está longe de ser dirigido principalmente a meninos até a adolescência. Como qualquer atração televisiva, sua ambição é atingir uma parcela expressiva de público de todas as idades e sexos.
Está implícita ainda a essência do sentido altruísta que Stan Lee deu a seus personagens: é preciso saber usar qualquer tipo de poder – e isso inclui racial, cultural, instrucional e econômico – para não prejudicar o próximo e, se possível, ajudá-lo também. Um princípio, aliás, que o jurista romano Eneo Domitius Ulpianus (Tiro, 150 — Roma, 228), conhecido no Brasil apenas como Ulpiano, um dos pais do direito, escreveu pouco depois de Jesus Cristo nascer: “Viver honestamente, dar a cada um o que é seu e a ninguém ofender”. Desde então, todas as leis e jurisprudências seguem esse princípio. E a moral que move os Quadrinhos também. Um dos trunfos de Heroes está na fórmula criada na década de 1990 por Alex Ross com o revolucionário Marvels (1994): e se um dia o nosso mundo fosse realmente habitado por super-heróis? Certamente saberíamos que, quando eles combatem os super-vilões sobre o telhado, as telhas caem na cabeça de alguém, como disse certa vez Frank Miller ao explicar sua idéia de reinventar Batman com a minissérie O Cavaleiro das Trevas (1986). Heroes trabalha com o emocional do telespectador e o aprisiona como acontece com os leitores de gibis, rotulados de nerds e bitolados. E o faz na TV com o movimento que os comics não permitem, o que põe o público diante de uma situação muito próxima de sua realidade.
A semelhança dessa suspeita em Heroes é evidente. Na ficção, porém, não há maniqueísmo como nos velhos gibis de mocinhos e bandidos, onde o bem o mal são claramente definidos para que os leitores saibam em quem devem torcer. Todo mundo, desse modo, merece uma segunda chance. No final, o vilão se redime e salva da destruição a mais importante cidade americana, numa seqüência emocionante que nos remete aos velhos e bons gibis de super-heróis das décadas de 1940 e 1960. Um desfecho que parece uma bobagem típica dos super-homens dos comics? Pode até ser. Mas os Quadrinhos são assim mesmo: teimam em incutir na cabeça da molecada que ela pode fazer o bem e ajudar as pessoas. Kring não abre mão de falar também de amizade e ética nos relacionamentos a partir da complexidade que cada um tem em administrar seus poderes, conseguir fugir da morte e, claro, salvar o mundo. Valores que andam bem esquecidos nesses tempos em vilões se tornam vítimas e vítimas, terríveis carrascos de bandidos coitadinhos, que todo mundo quer passar a mão na cabeça. |
Quem Somos |
Publicidade |
Fale Conosco
|