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A tradição dos Quadrinhos e política no Brasil?
Por Gonçalo Junior
18/09/2007

Um fato curioso relacionado à revista de contos policiais X-9, da Rio Gráfica e Editora (RGE), ocorrido por volta de 1963, caiu no limbo da história. Como me revelou há algum tempo o pesquisador e editor Wagner Augusto (Cluq) - o mérito da descoberta é todo dele -, em pelo menos um número, a publicação de Roberto Marinho trouxe uma história em Quadrinhos de autoria desconhecida que chamava a atenção pelo tom de alerta grave do tema tratado: o perigo real e imediato que representava para o mundo-judaico-cristão-ocidental-capitalista a revolução cubana de Fidel Castro, deflagrada a partir de 1959. Não havia dúvidas de que os textos eram de origem americana e, provavelmente, distribuída por alguma agência de notícias e de features (syndicate) pelos países vizinhos. Não sei precisar se foram feitas outras narrativas semelhantes. Mas a que li era uma trama muito bem desenhada, por algum artista profissional, e feita com propósito de servir como mera propaganda de guerra ideológica. Ou seja, de levar aos leitores da revista, de forma pretensamente disfarçada, uma mensagem negativa contra o comunismo que acabara de chegar à América por Cuba, um antigo cassino-prostíbulo que por décadas saciou o apetite sexual dos ricaços americanos.

Nunca se comentou a respeito dessa história em reportagens e artigos sobre Quadrinhos ou política. Pelo menos que se tem conhecimento na bibliografia disponível. Não há também informação sobre de que forma a editora responsável pela publicação foi contatada para reproduzi-la. Não por acaso, é preciso lembrar, X-9 trazia somente contos policiais, com exceção das duas capas internas que, durante algum tempo, publicou Quadrinhos policiais, em especial na década de 1950. Esse detalhe reforça a idéia de que a RGE se empenhou em divulgar o material, a ponto de romper com o formato editorial da revista. Uma volta ao conturbado Brasil de 1963 permite uma melhor compreensão do propósito de se usar os Quadrinhos para campanha contra o comunismo. Desde o ano anterior, articulava-se principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, uma mobilização para impedir um suposto - e jamais provado - golpe da esquerda, que pretendia instalar no país um regime ditatorial socialista orientado por Moscou. Essa seria a justificativa para um golpe militar efetivado no começo de abril do ano seguinte.
 
Para mobilizar a parte mais conservadora da classe média, organizações como o complexo IPES-IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e a Sociedade Brasileira da Tradição Família e Propriedade (TFP), além de entidades femininas católicas de vários estados, imprimiram folhetos, plantaram artigos em jornais e revistas e produziram filmes - curtas-metragens exibidos antes das sessões convencionais nas principais redes de cinema. Por fim, promoveram as famosas marchas da família com Deus pela liberdade contra o presidente João Goulart que dariam legitimidade ao patético golpe, engolido por todos, inclusive pelas forças de esquerda, desarticuladas e sem qualquer poder de reação. Não é essa discussão, claro, que interessa aqui. Ao observar esse cenário sombrio que se abateu sobre a democracia brasileira, é muito provável que os quadrinhos de X-9 fizeram parte desse esforço maior dos golpistas de "alertar" a "sociedade" brasileira da grande ameaça comunista que pairava sobre suas cabeças. Por serem os comics de fácil compreensão e de grande alcance de leitores na faixa juvenil, tentou-se levar a esse público o panfleto anti-Fidel Castro. Se plantavam reportagens na grande imprensa, por que não investir nos gibis?

A combinação entre Quadrinhos e política, estampada em X-9, não era novidade no Brasil, embora o tempo mostrasse que seria algo pouco explorado na história dos gibis e do humor gráfico - ao contrário da caricatura, da charge e do cartum, que acumularam uma longa tradição, a partir dos primórdios da imprensa nacional, oficialmente surgida em 1808. Desde os primeiros anos da revista infantil O Tico-tico (1905), por exemplo, seus editores e artistas se empenharam em promover campanhas patrióticas junto às crianças, com o propósito de despertar o espírito de um Brasil como nação. Algumas delas deu-se com o uso de Quadrinhos. Entre 1937 e 1942, o editor Adolfo Aizen (1907-1991). proprietário do Grande Consórcio de Suplementos, produziu edições especiais de O Lobinho e Mirim explicitamente engajadas na política ufanista da ditadura do Estado Novo, com a promoção de datas cívicas e vultos importantes da história política brasileira. Em 1941, Aizen foi além e publicou uma biografia em Quadrinhos de Getúlio Vargas, que lhe rendeu uma carta de agradecimento assinada pelo próprio ditador.

O editor voltaria à política em mais duas ocasiões. Em 1959, sua editora Brasil-América (Ebal) fez uma edição de Álbum Gigante para promover a construção de Brasília, num panfleto apresentado por ninguém menos que Juscelino Kubistcheck. Informações não confirmadas pela família Aizen dão conta que JK teria encomendado pessoalmente o projeto. No ano seguinte, Aizen publicou biografias em Quadrinhos com doze páginas cada de todos os candidatos à Presidência da República - Jânio Quadros, Henrique Lott e Eduardo Gomes. Essas revistas, hoje itens preciosos de colecionadores, eram vendidas nos comitês para arrecadar fundos de campanha. Os lançamentos desde o ano passado pela editora carioca Desiderata de livros com antologias da vasta produção do semanário O Pasquim - realizada entre os anos de 1960 e 1980 - permitem observar dois aspectos até o momento ignorados pelos muitos estudiosos do tablóide carioca. Primeiro, a força que a linguagem dos gibis teve no seu humor, uma abordagem até então tratada de forma genérica como cartum, sem se dar a devida atenção à sua peculiaridade e complexidade. Depois, o quanto foi longa, frutífera e intensa a aproximação entre Quadrinhos e política em suas páginas.

Os formatos de tira (com dois, três ou quatro quadrinhos) e de Histórias em Quadrinhos de página inteira - ou até mais de uma - eram constantes no jornal desde os primeiros tempos. Tanto ou mais que a caricatura e o cartum, o Quadrinho com balão deu o tom não somente em tudo que artistas como Ziraldo e Henfil, entre outros, realizaram. Henfil, aliás, costuma ser chamado muito mais de cartunista ou chargista, quando, na realidade, sempre foi um autêntico e devotado quadrinhista, cujas influências jamais abandonou até mesmo no humor diário do cartum. Teria sido ele um quadrinhista-cartunista? Arrisco a dizer que Henfil amava os Quadrinhos mais do que qualquer outra forma de humor. Tanto que chegou a se mudar para os Estados Unidos com o propósito de ver suas tiras distribuídas em todo o mundo por uma grande agência americana, numa incrível aventura que ainda precisa ser devidamente contada. Em O Pasquim, ele se apropriou, juntamente com Ziraldo, da linguagem seqüenciada dos comics para fazer piada contra o regime e denunciar as mazelas do país. Também o fez com a finalidade de apontar peculiaridades do comportamento do brasileiro urbano (futebol) e rural (Zeferino, Graúna e cia).

Essa politização de sua arte aparece até mesmo a antologia Urubu, que acaba de sair, com sua graça sobre o time do seu coração, o Flamengo. O volume transcende o universo do Henfil para tratar de outros temas como violência nos estádios, corrupção e mercantilização do futebol. Os Quadrinhos serviam para Henfil, nesse e em outros casos, para expressar idéias que pediam um diálogo ou monólogo seqüencial para se completar uma piada, uma situação cômica. Daí ele ter explorado intensamente e formas diversas o espaço físico da tirinha - vertical, horizontal, "quadrada" etc. Outro seguidor dos Quadrinhos políticos nas páginas de O Pasquim foi o pouco lembrado cartunista Reinaldo, hoje astro do programa humorístico Casseta e Planeta, exibido pela Rede Globo. Desenhos de humor reúne o melhor de sua passagem pela segunda fase do tablóide, entre 1974 e 1985, mais trabalhos posteriores que ele fez para Chiclete com Banana (Circo Editorial), Bundas, Careta (Editora Três), Papel de Bobo e Casseta e Planeta (Toviassu), além de alguns cartuns inéditos.

Boa parte do seu material é formada por histórias em Quadrinhos de uma página. Ao ler essa seleção, o leitor sente certa familiaridade e do quanto o humor de Reinaldo, principalmente em política, está presente nos quadros do programa de TV. Assim como Henfil, esse talentoso cartunista de traço rústico e influenciado por Jaguar precisava quase sempre de quatro a seis Quadrinhos para desenvolver uma história de começo, meio e fim, como nas séries O advogado do diabo, Moacir, a mulher barbada e Jorge, o paranormal normal. No volume dois da antologia do Pasquim, que cobre os anos de 1972 e 1973, o que não faltam são Quadrinhos políticos, no momento mais crítico de repressão da ditadura militar. Tem Nani, Henfil, Ziraldo, Carlos Estevão, Jaguar, Vilmar, Redi e Caulos e até uma história de cinco páginas (e 94 Quadrinhos) escrita e desenhada por Millôr Fernandes. Todos eles aparecem no melhor momento de sua produção, com um humor político reflexivo, inteligente e, principalmente, influente, pois, não raro, era comentado por todos e levava a censura a apreensões e cortes.

Ainda nas páginas de O Pasquim, a parceria de Ivan Lessa e Redi rendeu o álbum Gip! Gip! Nheco! Nheco!, também da Desiderata. A edição apresenta bem mais que cartuns: boas Histórias em Quadrinhos, com seu traço personalíssimo e textos que davam ênfase aos acontecimentos políticos do momento. Em narrativas de uma página, quase sempre, a série que dá nome ao volume trazia bastante textos nos balões, sobre aspectos do comportamento do brasileiro da época - futebol, censura, revolução sexual etc. Para os pesquisadores interessados, essas coletâneas descortinam não apenas a resistência da imprensa brasileira e de uma geração de artistas talentosos. Revelam um aspecto desprezado da História dos Quadrinhos brasileiros: o quanto o humor político se apropriou de sua estrutura narrativa para combater a ditadura militar. Um gênero que, infelizmente, sobreviveria em poucas iniciativas com os anos que se seguiram à redemocratização, iniciada em 1985, como nos gibis e livros da Circo Editorial (Chiclete com Banana) e na página de Quadrinhos de Paulo Caruso na Istoé.

Tanto Angeli e Laerte quanto os irmãos Caruso tiveram uma origem em comum e uma trajetória semelhante. Formaram-se da leitura de O Pasquim e dos Quadrinhos de O Grilo - embora eles nunca enfatizem essa segunda influência. Não por acaso, criaram em 1972 a revista alternativa Balão. Depois, foram trabalhar na imprensa alternativa e, em seguida, na "grande" imprensa. Nos jornais, produziram tiras antológicas e preencheram os espaços de charges e caricaturas com seus desenhos. Mas não tiveram expressivos seguidores nas décadas seguintes. Uma pena. A Turma do Pasquim tinha uma compreensão natural desse conceito de Quadrinhos e ideologia - o mesmo do cartum, da charge e da caricatura. Destacadamente no caso de Henfil, para quem criar humor era fazer guerra, militância política. Não deixa de ser curioso, nesse sentido, uma incoerência: sua obra continua a ser cada vez mais reverenciada, mas não consegue influenciar novas gerações. Parte da explicação para isso está na generalização do tratamento dado à sua obra, quando se costuma restringir a um momento específico de humor que foi feito para combater a ditadura.

Muito desse espírito pasquiniano sobrevive, felizmente, no engajamento solitário de Allan Sieber. Seus livros, como Preto no Branco (Conrad) e Mais preto no branco (Desiderata) fazem dele uma mosca na sopa no comportamento classe média urbana da primeira década do novo século. Seu estilo (per)segue a escatologia e o bizarro do humano, fisgados das situações mais corriqueiras em que a maioria dos leitores sente bem próximos. Avacalhador nato, ele tem uma habilidade única para fazer humor com uma simplicidade e eficiência desconcertantes. Não se engane. Sieber faz principalmente política ao desnudar o comportamento mesquinho, individualista e medíocre de uma era em que todos nasceram para brilhar e antigos valores humanistas se tornaram babaquice de idealistas.

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