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Entre o sagrado e o profano
Por Leonardo Santana
29/05/2007

Clint Eastwood tinha acabado de lançar o seu primeiro filme como diretor, o aclamado pela crítica e pelo público Bird, quando, outra vez, surpreendeu a comunidade de Hollywood anunciando que emprestaria sua cara uma vez mais para dar vida ao durão detetive Dirty Harry, gerando uma onda de protestos por parte dos “entendidos” de Cinema. A polêmica era: se você conseguiu produzir um filme de alto valor artístico, por que voltar para a massificação comercial através de filmes puramente descartáveis? Clint Eastwood, com aquela sua cara séria de lonesome cowboy disparou um único e certeiro tiro que silenciou os mais ferrenhos críticos com a seguinte declaração: “São os Dirty Harrys que me permitem fazer um Bird!”.
 
As pessoas inteligentes raramente são radicais. Elas reconhecem e sabem muito bem utilizar aquele ditado que diz: “Se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Cada vez mais, as pessoas estão percebendo que é possível aliar os desejos interiores e os projetos pessoais com as “obrigações” de seu trabalho, de sua profissão. Senão, vejamos: os músicos, contratados de gravadoras, fazem a música que gostam e querem (sua expressão artística) mas são “obrigados” a comparecer em shows de variedades mesmo que seus perfis não combinem com estes programas (obrigação da profissão). Em Hollywood, mais um exemplo, o diretor de Cinema Steven Soderbergh e o ator George Clonney criaram uma produtora independente e, a cada filme arrasa-quarteirão que eles fazem para os grandes estúdios (obrigação da profissão), eles produzem um filme independente (seus projetos pessoais).
 
Um outro ponto a se observar – e, neste caso, vamos nos ater especificamente ao campo dos Quadrinhos – é que um artista, primeiro, tenta fazer o seu nome. E, depois, ele vai evoluindo e tentando novas experiências. Para explicar melhor, vamos tomar como exemplo o Frank Miller (mas podia ser qualquer um, até mesmo Will Eisner). Ele começou desenhando o Demolidor para a Marvel. Foi evoluindo com artista e autor e, após ter uma base sólida de trabalhos, tentou novas experiências narrativas com Ronin e, posteriormente, com Sin City. Isso tudo foi só para dizer que o autor também precisa de maturidade para se lançar em novos vôos, e maturidade só se consegue produzindo cada vez mais e melhor.
 
Isto posto, vamos voltar à nossa linha de raciocínio inicial. A maioria dos artistas – mas ainda não os nacionais - tem percebido, desde cedo, a simbiose necessária entre o seu trabalho artístico e as obrigações impostas pelo mercado e encara isso com, até, certa naturalidade. Eles, então, muito sabiamente, procuram crescer em suas carreiras, construírem seus nomes, melhorarem seu trabalho para que possam, de uma forma confortável e segura, digamos assim, produzir suas verdadeiras obras-primas, lapidarem o diamante bruto de sua arte e de seu talento numa jóia especial para um público especial.
 
Mas isto, salvo raríssimas exceções, não é o que acontece com os artistas de Quadrinhos Brasileiros. Todos só pensamos em produzir Quadrinhos de arte. Escrever ou desenhar heróis, infantis, romances e outras “futilidades” é considerado um trabalho “menor”, “inferior” e passa a ser totalmente “desprezado” por boa parte de nossa comunidade. Ora, pergunto eu, não seria melhor ter um emprego de roteirista para revistas infantis de editoras como a Globo ou a Panini, ganhar dinheiro com a profissão que você escolheu para viver e, com isso, talvez, ter condições de, num futuro próximo, desenvolver seu próprio projeto pessoal com tudo aquilo que você sempre sonhou? Ou melhor seria trabalhar 8 horas por dia como vendedor, telefonista, programador, carpinteiro ou qualquer outra profissão que não seja aquela do seu coração para produzir a mesma obra? Isso raramente é considerado pelos artistas nacionais. Eles querem ser desenhistas. Mas só de novos Spirits. Eles querem ser escritores, mas só de novas Watchmen. Não encaram a profissão que escolheram como tal. Encaram-na apenas como uma expressão artística de sua natureza especial e única. E, assim, saem todos os dias para pegar seu ônibus para seu trabalho ordinário nada de especial e, com certeza, nada de único.
 
Eu já devo ter mencionado em alguma de minhas outras Colunas, mas volto a insistir na mesma tecla: enquanto tivermos mais artistas que profissionais, não teremos mercado. E o profissional-artista precisa ser inteligente o suficiente para produzir obras de qualquer natureza, seja ela infantil, erótica, super-heróis, obras encomendadas de qualquer espécie, pois isso faz parte do seu trabalho. Você escolhe ser desenhista ou roteirista. Você não escolhe ser artista. Após muito trabalho – ei, “trabalho” não se trata de uma palavra tão feia assim quando você faz o que escolheu fazer e não o que a vida lhe impôs a fazer – se você fizer as coisas certas, o seu público – e jamais você – lhe concederá essa alcunha tão cobiçada por alguns. O problema é que a maioria só quer ser artista. E essa perspectiva errada das coisas é mais um dos fatores que nos fazem patinar na hora de que se fala em mercado nacional.

Por isso, não se envergonhe em aceitar aquele trabalho erótico que lhe encomendaram ou em produzir aquele super-herói para aquela grande editora americana. Só não se esqueça de, paralelamente, ou, até mesmo, depois que chegar lá, desenvolver o seu talento em seus projetos pessoais, aqueles que toquem nos assuntos que você acha importante falar. E não se esqueça: “São com os Dirty Harrys que você pode fazer um Bird!”.

(Ilustração: Gerson Witte)

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