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Idioma Nacional
Por Jean Okada & A. Moraes*
19/03/2007

Mark Millar era próximo de Grant Morrison na época em que os dois desenvolviam tese sobre tese a respeito do aspecto cíclico dos Quadrinhos comerciais. Uma conversa com duas pessoas diferentes na rede precipitou esse assunto: o suposto boom dos Quadrinhos nacionais num futuro próximo.
  
Em nosso país essa tese funciona mal porque não temos um Quadrinho brasileiro tradicional e/ou comercial como nos EUA (comics), Japão (mangá) e Europa (bande dessinée), só pra citar alguns. Ou não temos um mercado pro Quadrinho brasileiro. Aí entra aquela idéia de atirar no próprio pé ou morder o próprio rabo. São duas partes do todo que não existem e que são necessárias pra se cogitar um boom do Quadrinho nacional. É um tipo de ciclo às avessas, impossível de ocorrer por não ter uma base que o sustente.

A arte seqüencial como forma torna-se o elemento essencial (o “vaso”, Segundo Scott McCloud) e todos os outros são contingenciais (coisas que temos a opção de usar ou não)... o fato de não termos mercado ou tradição nos Quadrinhos não impede, no entanto, que as tenhamos. Mas teríamos histórias em Quadrinhos como “idioma cultural” (ou seja, uma coleção de convenções e estilos típica de nosso país)? Os comic books nos EUA, por exemplo, se originaram das tiras de Quadrinhos (ou funnies) que, depois de publicadas em jornais começaram a ser colecionadas e vendidas no formato grampeado que persiste até nossos dias. Vendo o sucesso do material publicado dessa forma, os investidores buscaram material inédito produzido exclusivamente pro formato. Claro que isso tornou possível acrescentar recursos à linguagem, como a splash page, por exemplo, impossível na tira.

Os comic papers, assim chamados no Reino Unido, têm origem similar, sendo também coleções de tiras. Exceto que o formato tablóide ou magazine foi adotado nas reproduções, daí a leve diferença entre os nomes. No Japão é possível traçar paralelos com outras narrativas gráficas mais primitivas, supostamente produzidas pros elementos da população menos letrados. Essas datariam do séc. XVIII. Mas a indústria como a conhecemos agora só se originou mesmo depois da II Guerra e sob a influência dos americanos, que trouxeram artistas de seu país pra ensinarem aos japoneses técnicas de produção desse tipo de entretenimento. Segundo consta, o “pai” dos Quadrinhos japoneses (ou mangás), Osamu Tezuka, apropriou-se de recursos utilizados pelos tantos artistas sem-nome de Walt Disney a fim de produzir suas próprias histórias e, assim, criou boa parte do idioma tão popular hoje em dia.

Na Europa, a bande dessinée (ou tira desenhada, melhor acepção que comic book ou funnies, se pensar-se a respeito, por não dar a idéia do conteúdo ou gênero da obra... uma curiosidade: o termo bande em inglês pode significar tanto tira quanto fotograma) tem origem similar e é mais levada a sério, sendo considerada por alguns acadêmicos como a Nona Arte. Em sua origem, o Quadrinho franco-belga não tinha intenção de ser “luxuoso”; essa é a conclusão mais óbvia, é claro, por isso tendemos a adotá-la. A opção pelo formato de álbum tinha a intenção de fazê-los acessíveis e econômicos, por incrível que pareça. Depois da guerra mundial que devastou a Europa, o preço do papel estava altíssimo; então os editores concordaram com os autores em produzir as histórias de modo que se aproveitasse o papel ao máximo, fazendo com que cada página contivesse o maior volume de informação possível. Chegaram nesse formato, que tornou-se característico: tamanho grande, 4 tiras por página, 12 a 15 quadros em cada página. E os coloriram pra tornar o produto mais atraente. Enfim, o formato surgiu de uma necessidade.

Os fummetti italianos derivam quase diretamente da produção de material da Walt Disney, lembrando que grande parte das revistas de Pato Donald e Cia. foram, por um tempo, produzidas nesse país. A diferença sendo, é claro, que ao invés de investir no humor os italianos apostaram nos Quadrinhos de aventura. Engraçada a informação obtida tempos atrás de que isso ocorre porque eles não tiveram uma tradição de literatura de aventuras, como os EUA com os pulps. Exceto, talvez, pelo lendário Emilio Salgari. Ênfase no talvez. A HQB (que gostaria de ver sempre identificada, por motivos afetivos, como “gibi”) ainda está à procura de identidade. A partir do momento em que se estabelecer um modelo ou uma adaptação da linguagem dos Quadrinhos como modelo nacional, talvez tudo se torne mais factível. Óbvio que falar da criação de um idioma usando a linguagem dos Quadrinhos, a arte seqüencial, como ocorreu nos países supracitados demanda, como mencionado anteriormente, um mercado.
 
Observar que as grandes escolas de Quadrinhos do mundo são justamente as que têm os mercados maiores e mais fortes é a conclusão a que se chega, também, com mais facilidade. O “idioma” dos Quadrinhos nacionais surgiria de maneira espontânea (e não à força, como querem os mais puristas), através de um processo evolucionista do mercado (ou seja, leitores que escolheriam e demandariam mais material de determinado gênero, por exemplo). O processo, imaginário no momento, se dividiria em algumas etapas, como segue:
 
- Mercado forte: vários títulos publicados simultaneamente, dos mais variados gêneros;

- Os consumidores escolheriam entre estes dos que mais gostassem, e as vendas apontariam para o tipo de Quadrinho que a grande massa preferiria (seleção natural);
 
- A partir daí se traçaria o perfil do consumidor e surgiria o "idioma" do Quadrinho do país.

Agora, mesmo levando-se em conta a não existência de um mercado expressivo de HQB, talvez nosso “idioma” já tenha surgido: seriam os Quadrinhos infantis. Não é por acaso que se ouvem muitas falas como “gibi é coisa pra criança”. Alguns (ou muitos) autores se sentem ofendidos com isso. Na verdade é indiferente. Isso não significa necessariamente que devamos fazer SÓ HQs pra crianças - o Quadrinho americano mais reconhecido é o de super-heróis, mas eles não fazem só esse tipo de história. Dominar a linguagem, no nosso caso, pode ser o suficiente pra manter o interesse do leitor no material que produzimos localmente.

Claro que nem todos têm habilidade ou vontade de trabalhar no gênero infantil. Pensando nisso, pode-se arriscar em outras frentes que sempre tiveram boa aceitação: humor e terror. As últimas tentativas nesses gêneros podem até ter fracassado, porém é quase certo que isso ocorreu mais em conseqüência da falta de qualidade do material do que por desinteresse do público. Um gênero mais arriscado é o dos super-heróis. Não é só por ser algo tipicamente norte-americano, mas porque aqui esse mercado parece esgotado. As tiragens de Marvel/DC estão hoje em 15, 12 mil exemplares; não é informação privilegiada que dessas tiragens somente cerca de 30% são vendidos. Ou seja, quem tentar esse gênero vai dividir esse número reduzido de leitores com seu próprio gibi... Sem mencionar que quem gosta de Marvel/DC gosta SÓ disso, não quer saber de outra HQ, por melhor que ela seja.
 
Uma coisa a se pensar: o jeito de se fazer Quadrinhos, em países diferentes, sempre surgiu de uma necessidade dos autores/editores desses mercados. No caso brasileiro, como não temos mercado, os Quadrinhos são produzidos apenas nas nossas horas de folga, e por isso as histórias longas são praticamente inviáveis, pois demoram muito pra serem feitas. Isso nos obriga a produzir só histórias curtas e fechadas, pois nunca sabemos se uma revista vai chegar ao número 2. Nosso leitor potencial ficaria a ver navios sem saber o final da história. Pode-se pensar que o contexto em que nós vivemos nos transformaria em mestres das narrativas curtas, não?
 
Curiosamente, os tipos de gibis que nós tivemos, e que fizeram sucesso no passado - Terror e Humor - eram gibis com histórias curtas. Os gibis da Turma da Mônica, também.

* Jean Okada é desenhista e A. Moraes é roteirista; a dupla tem HQs publicadas em revistas independentes como a Orbital e a Quadrinhópole 

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