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Por Marcio Baraldi 08/01/2007 Caros amigos leitores, antes de mais nada, já vou avisando: esta DEFINITIVAMENTE NÃO É uma entrevista comum!!! De todas as inúmeras que já fiz, esta foi sem dúvida a mais impressionante! Você que é quadrinhista ou que está acostumado a ler os mais arrepiantes thrillers policiais, vai perder o fôlego ao ler os relatos verídicos de Mário Latino, um cartunista nicaragüense radicado no Brasil, ex-guerrilheiro Sandinista e dono de uma história de vida que pouquíssimas pessoas agüentariam viver. Antes de fazer qualquer julgamento sobre os atos deste Mário, latino até no nome, procure compreender que a América Latina, nos anos 1960 e 1970, foi palco de um festival de ditaduras horrendas e sangrentas que duraram muitos e muitos anos, levando à morte milhares de pessoas. Guerrilha, como o próprio nome diz, é uma pequena guerra e toda guerra consiste em pessoas morrendo de ambos os lados por culpa de meia dúzia de todo-poderosos que se acham no direito de esmagar a soberania de um país e oprimir um povo. Todas essas ditaduras foram patrocinadas ou apoiadas diretamente pelos EUA, que visavam transformar o continente latino-americano em seu quintal, seja pela força bruta, tortura e matança dos contrários a tal idéia, seja pela fortíssima propaganda ideológica-alienante, que massificada pela mídia submissa e vendida, tentava a todo custo domesticar e amansar as populações oprimidas de tais países, incluindo nosso Brasil varonil. Até hoje vemos os EUA, na hedionda figura de Bush, descaradamente invadindo Iraques e Líbanos para roubar-lhes o petróleo e dominar o Oriente Médio, matando soldados (marionetes de guerra), civis e crianças sem o menor pudor. Nada justifica tais barbáries, nem ontem, nem hoje, nem nunca mais! Hoje, trinta anos depois, não há mais guerrilhas na América Latina, mas também não há mais ditaduras, pois uma não existe sem a outra. É tempo de democracia, tempo de aprender com a História, com os erros e acertos da Humanidade. E justamente por acreditar que a democracia é a melhor coisa do mundo que eu não podia deixar de entrevistar esse cartunista talentoso, que não fez apenas Histórias em Quadrinhos, mas literalmente FEZ A HISTÓRIA da Nicarágua livre! Alguém que, com armas na mão, convicções inabaláveis e coragem extraordinária, literalmente escreveu a história recente de seu próprio país! Um espécime raro, personagem histórico vivo, cuja trajetória de vida certamente daria um filmaço espetacular capaz de colocar James Bond no chinelo. Segure-se então, firme na cadeira, caro leitor, porque a partir de agora cenas inacreditáveis vão passar pela sua mente, sua cabeça vai girar como numa roda gigante! Giraaaaa, Comandante Mariãooooooooooo!!!!...... Pelo que me consta, você é o único cartunista que já foi guerrilheiro na vida, não? Conhece algum outro (risos)? Guerrilheiro propriamente não, mas já houve outros cartunistas que estiveram em combate. Um deles foi Jack Kirby, que, se não me engano, combateu na Normandia. Teve outro americano que largou a tira Scorchy Smith para manejar a metralhadora de um avião de guerra nos céus da Birmânia e morreu em combate,seu nome era Bert Chrismas. Sua história de vida é tão fantástica que se você mesmo não contá-la, muitos leitores provavelmente não acreditariam. Por isso vamos lá: conte como foi sua atuação na guerrilha sandinista? Como era sua vida na Nicarágua antes da guerrilha, você sempre foi um idealista, foi um militante estudantil na adolescência, por exemplo? Gozado como são as coisas. Quando adolescente eu achava minha vida tão monótona e eu pedia a Deus (nesses tempos eu ainda acreditava em Deus) para ter uma vida recheada de aventuras. Voltando à pergunta, quando eu nasci, a família Somoza estava no poder na Nicarágua já há três décadas. Isso revoltava muito o povo nicaragüense, principalmente a minha geração. O poder dos Somoza e de seus asseclas era tão grande que o país parecia ser uma enorme fazenda com um único dono. Tudo pertencia aos Somoza! As gerações anteriores a minha pareciam ter se acomodado e não lutavam mais, com exceção de alguns poucos “quixotes”, cujo destino era a morte em combate, a prisão ou o exílio. Até que em 1961 surgiu a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), que era formada no início por jovens universitários (quase todos estudantes de direito da UNAN do núcleo de León), operários e alguns camponeses. Espelhados no sucesso da revolução cubana, eles foram pras montanhas e começaram a luta de guerrilhas contra o regime somocista. Naquela época eu ainda tinha quatro anos e não pude me juntar a eles (risos). Falando sério, aquele grupo de jovens revolucionários apanhou muito nesses anos por falta de apoio da população, falta de recursos e muito isolamento. As notícias sobre as ações armadas chegavam à população muito difusas e amplamente distorcidas pela mídia que era totalmente anticomunista. Em 1966 o principal líder do FSLN, Carlos Fonseca Amador, foi capturado e julgado publicamente. Esse processo realizado em Manágua ajudou muito a difundir os ideais sandinistas entre a população, pois Carlos que era estudante de direito, se defendeu muito bem, demonstrando que a luta do FSLN era legítima. Muitos militantes da FSLN morriam em confronto com o exército, na época eu ainda era um garoto ingênuo, mas acompanhei os eventos com profunda dor e simpatia por aqueles que morriam pela pátria. Não que eu fosse um indivíduo com idéias revolucionárias, mas era muito simpático às idéias de justiça e de luta contra a opressão. Por paradoxal que possa parecer, esse tipo de postura eu fui adquirindo em contato com a literatura e os personagens românticos (Rocambole, Três Mosqueteiros, os heróis de Julio Verne, Dick Turpin, Sherlock Holmes) e com a religião. Por um bom tempo da minha vida, eu acreditei nessa história toda de Deus e acabei me enrolando com as testemunhas de Jeová. Hoje quando falo disso parece até piada, mas na época não foi assim. O engraçado foi que graças às testemunhas de Jeová, acabei entrando em contato com a miséria do povo, já que na atividade de pregação éramos obrigados a visitar as favelas e cortiços da cidade. Favela é uma maneira civilizada de chamar aquilo que encontrávamos, com casas de papelão, esgoto correndo a céu aberto e famílias inteiras vivendo do que pegavam no lixo. Andei com essa gente até que entrei na universidade, onde passei a questionar por que Deus permitia tanta miséria e injustiça no mundo e, conseqüente, minha fé religiosa virou pó. A universidade era outro mundo. Para começar, apesar do regime, gozava de autonomia e isso significava que os órgãos da repressão não podiam entrar nela. Era um ambiente onde se respirava liberdade. Aí aprendi outra história de meu país, aquela que os livros oficiais não contavam. Também entrei em contato com o materialismo dialético, materialismo histórico e Marx. Um rapaz da minha turma (eu fazia engenharia civil), que já era militante do Frente Estudantil Revolucionário viu que eu estava interessado em ajudar e me deu uns panfletos para distribuir entre meus colegas. Aí, de repente, quando vi já estava marchando com um monte de alunos levando faixas com dizeres de protesto. Caminhamos um bocado e finalmente chegamos ao Bairro Riguero, onde a população curiosa (pois naquela época estudantes universitários da UNAN eram respeitados) olhava interessada. Foi nesse momento que uma companhia do exército se postou frente a nós com a intenção de bloquear nossa passagem. Ainda tiraram a trava dos fuzis e nos apontaram, eu acho que com enormes possibilidades de atirar. Foi aí que o rapaz que comandava a marcha, o “Capi” Rosales, ordenou que entoássemos o hino nacional. Obedecemos e a população se uniu a nós, cantando com muita convicção e o exército se intimidou e nos deixou passar. Aquele foi meu primeiro contato com a causa revolucionária. Nesses anos, 1976 e 1977, a situação política do país continuava piorando. O governo de Somoza pediu a ajuda do CONDECA, o organismo conjunto das forças armadas de América Central, e com tropas de Guatemala, Honduras e El Salvador o cerco ao FSLN nas montanhas ficou ainda mais apertado. A repressão nas cidades também aumentava e chegou um momento em que eu não consegui mais me negar a escutar a voz da minha consciência. Tinha começado como um murmúrio baixinho até chegar a se tornar um barulho insuportável! A partir desse momento não podia mais me omitir e ficar sem fazer nada enquanto companheiros morriam ou apodreciam nas cadeias. É engraçado porque pessoalmente não me encontrava mal. Acabava de terminar o sexto semestre de engenharia, trabalhava numa repartição pública e tinha meu próprio dinheiro, em resumo, estava a caminho de me tornar um burocrata responsável (risos). Conhecia alguns militantes da tendência proletária e expus que queria me incorporar à luta armada. O cara me olhou com curiosidade e depois me falou de uma reunião que ia se realizar numa sala do departamento de arquitetura. Participei da reunião, conheci outros militantes e alguns dias depois, já agrupados em estruturas de combate que eram denominadas “Brigadas Populares”, foi determinado que teríamos nosso batismo de fogo. As BPs eram unidades pretensamente de combate, embora, por falta de logística, sua atividade seria menor, como assaltos a caminhões de produtos alimentícios que entravam nas favelas e bairros pobres. Se o caminhão fosse de leite, por exemplo, os produtos seriam distribuídos entre a população carente. Já cerveja e refrigerante a gente não mexia e só pegaria o dinheiro do motorista. Outra atividade era a “recuperação” de armas em poder de vigias particulares que era meio arriscado, pois o cara poderia abrir fogo contra a gente. Em resumo, a gente ainda era café pequeno. Nessa época eu já tinha um revólver calibre 22 que arranjara com um amigo meu da escola, o Cristóbal, que agora estudava medicina. Ele roubara do pai e o repassara para mim, que o dei para a organização. Nossa primeira ação foi um assalto à uma editora (risos) que, pra variar, era da família Somoza (mais risos). Chegamos em dois veículos e descemos aos poucos na região, um bairro chique da cidade com muitas árvores e pouca vigilância por parte da polícia. Entramos com um lenço no rosto e anunciamos que era um assalto em nome do FSLN. Um dos companheiros enfiou os empregados no banheiro enquanto outros dois iam direto para o caixa com o gerente. Eu tinha ficado tomando conta do corredor e um companheiro de codinome Benito, baixo e magricela, ficara na porta com a obrigação de controlar e dominar qualquer um que entrara no local. Foi então que entrou uma senhora totalmente desavisada. Na verdade ela era uma mulher alta e muito gorda (tipo uns 100 quilos). Aí o Benito lhe comunicou que aquilo era um assalto e tentou levá-la para o lugar em que se encontravam os outros. Mas a mulher, se é que aquilo podia ser chamado dessa forma, reagiu histericamente e arrastou o Benito como se fosse um boneco em direção à porta de saída que era de vidro. Foi então que eu cheguei nela, peguei-a pelos cabelos com força e lhe encostei o revólver no rosto. Aí ela caiu na real e obedeceu. Depois a gente foi embora com mais de mil dólares, mas nos dias seguintes, quando fizemos a avaliação de nossa atuação, o companheiro que estava no comando destacou minha participação decisiva no evento. Decidiu-se aí que eu passaria a ser chefe de uma BP e me designaram seis companheiros como subordinados. A BP foi batizada como “Oscar Robelo Sotomayor” em homenagem a um companheiro morto em combate. Depois dos ataques, com muita divulgação por parte da imprensa nacional e internacional, Somoza decretou novamente Lei Marcial e inundou as cidades com tropas do exército que percorriam os bairros pela noite revistando casas e prendendo suspeitos de colaborar com a guerrilha. Numa dessas noites eu tinha sido deslocado para um enorme favelão chamado “América” que se dividia em “América 1”, “América 2” e “América 3”. Estava quase dormindo quando chegou uma companheira, a Paquita, que me avisou que o exército vinha revistando as casas e que tínhamos que carregar uma caixa de documentos que estavam escondidos debaixo de minha cama para outro lugar. Aquilo era arriscado, pois o toque de recolher começava às oito da noite e já eram nove e meia. Qualquer um que se arriscasse a sair naquele horário poderia ser morto sem reclamar. Pegamos a caixa entre os dois e saímos em direção a outro aparelho ou “casa de segurança” numa área que já tinha sido revistada, atravessando ruelas escuras e sem asfalto. A sorte nossa era que as ruelas eram tão estreitas e sinuosas que o exército tinha que entrar a pé. Na caixa tinha algumas bananas de dinamite e um revólver 38 carregado. Por precaução guardei o revólver no cinto e fomos em frente. Estávamos na metade do caminho, encostados nas cercas vivas, quando ouvimos a voz de um soldado que, encostado num poste de iluminação ,ordena que nos identifiquemos enquanto corre o ferrolho do fuzil. Depois eu lembro o que aconteceu nesse momento como se estivesse em câmara lenta, tipo um daqueles filmes de Sam Peckinpah. Deixo cair a caixa enquanto saco o revólver e o soldado vai levantando o cano do fuzil que aponta para o chão em direção a mim e antes de que termine o percurso eu atiro uma, duas vezes. Ao início nada acontece e eu espero o fim. Então o soldado começa a escorregar no poste até cair no chão e fica quieto. Suado e tremendo, pego a caixa e cortamos caminho por um pátio até chegar a nosso destino. Deito num colchão para dormir e aguardamos o dia chegar para poder sair do bairro. De manhã saímos em separado e pego uma lotação para o outro lado da cidade enquanto escuto os comentários dos operários que vão trabalhar sobre o soldado que morreu a noite passada em confronto com os guerrilheiros. Assim, sem querer, eu fui o primeiro daquela leva de futuros combatentes que matara um inimigo. Por incrível que pareça, aquilo me marcou definitivamente e me deu moral para os difíceis dias que estavam por vir. Desse momento em diante meus subordinados e os chefes de outras BPs se referiam a Rubén (meu codinome, nome falso que precisávamos ter) com muito respeito, quase como uma lenda. Em dois ou três meses estávamos feras e com um arsenal razoável de armas curtas e munição. E sempre tratávamos bem as nossas vítimas, a grande maioria inocentes, esclarecendo-as do porque estávamos fazendo aquilo, do motivo justo da causa e eu acho que conseguíamos angariar até a simpatia daqueles que prejudicávamos. Em pouco tempo aquele bando de moleques inexperientes eram soldados prontos e capazes de assumir novos compromissos. Mas a situação estava ficando cada vez pior. As batidas policiais eram mais constantes e as unidades anti-terroristas, como eram chamadas, circulavam impunemente em comboios de três a cinco jipes, com um oficial no comando e 15 homens com coletes, fuzis Galil de fabricação israelita, submetralhadoras Uzis e uma metralhadora 50. Dava vontade de se mijar nas calças só de vê-los! Foi então que em junho de 1978 o pessoal de cima decidiu que estava na hora de testar nossas forças. Houve um planejamento de onde a ação seria feita e isso foi fácil, já que um daqueles comboios todos os dias entrava por uma estradinha de terra chamada “Caminho de Bola” que margeava um dos bairros mais violentos e combativos de Manágua, San Judas. Por esse caminho aquela unidade ia até uma antena de rádio e tv que pertencia ao governo, a rede Nacional e verificavam que tudo estivesse em ordem. Para essa ação se solicitou que cada BP cedesse alguns homens que passariam a agir sob uma nova coordenação, neste caso gente mais experiente. No nosso caso, eu fui o designado. Nos reunimos numa casa em San Judas, onde alguém já levara as armas escondidas em sacos de farinha. Um dos membros do nosso grupo tomaria conta de uma metralhadora FG-42 e o outro do melhor fuzil, um Fal calibre 7,63. Os demais combateríamos com carabinas e com fuzis Garands calibre 30 daqueles que você vê nos filmes da Segunda Guerra e com um coice daqueles. Caía a tarde quando recebemos a ordem de começar a nos deslocar para nossos lugares na emboscada. O caminho era sinuoso, poeirento e com algumas touceiras aos lados. O lugar da emboscada foi escolhido numa subida, onde os motoristas dos jipes teriam que colocar a terceira ou a segunda marcha, dependendo da velocidade. Mas, por um erro de cálculo, o homem da metralhadora não tinha chegado a sua posição quando o comboio passou. Até aí não tinha problema, pois era só questão de esperá-los na volta, o que aconteceria em quinze, vinte minutos. O problema foi que um dos nossos escorregou do seu ponto e rolou até o centro da estradinha com sua carabina. Nesse momento passava um veículo particular. Obviamente o motorista se assustou e acelerou. A dúvida nossa era se o cara avisaria ao pessoal do comboio. Não deu outra porque ao cabo de alguns minutos enxergamos a poeira do comboio que tinha dado a volta. A emboscada se alastrava por espaço de uns trezentos metros e os militares, como desconheciam esse fato, desceram dos veículos no começo da emboscada e foram pela beirada em direção ao lugar onde o motorista tinha visto um de nossos combatentes. Ao fazer isso, indo em fila indiana e com uma distância entre eles de quatro metros eles nos facilitaram as coisas, pois ficavam bem nítidas as silhuetas deles na penumbra. Como combinado, o cara do Fal foi o que abriu fogo. A lembrança do som das rajadas curtas ainda me emociona quando lembro desses detalhes. Como pinos de boliche, dois homens caíram, entre eles o chefe do comboio. Os caras recuaram para se proteger e foi nisso que a metralhadora lhes cortou a retirada para os veículos, onde estava o equipamento de rádio. Desorientados e sem comando tentaram sair cada um por si da armadilha em que tinham entrado, mas não conseguiram. A “emboscada do caminho de Bola” com oito mortos e cinco feridos, todos eles do exército somocista, foi o primeiro combate de grande magnitude na capital e foi nossa formatura como guerrilheiros. Já estávamos em setembro de 1978 quando fui nomeado vice-coordenador das atividades militares na região ocidental de Manágua e me vi praticamente comandando entre nove e dez BPs. Já nem conhecia todo o pessoal que estava sob meu comando e muitas BPs eram um arremedo, com gente que nunca tinha combatido nem participado de ações militares, por mais simples que fossem. Entre outubro e novembro de 1978, foi um inferno, literalmente. Assaltei ou comandei assaltos a três bancos e um mega-supermercado, o Plaza España. Nossas BPs emboscavam veículos militares em San Judas, Monseñor Lezcano e Altagracia. Atacamos duas vezes delegacias de polícia e executamos membros das forças especiais, do famigerado OSN (Órgão de Seguridade Nacional) e do exército. Quando penso nisso me vejo como aquele anjo da vingança do antigo testamento com minha espada flamejante. Eu era o instrumento da vingança daquele povo oprimido por quase 50 anos. Hoje nós vivemos num mundo mais democrático. Venezuela, Bolívia, Argentina e Brasil têm presidentes de esquerda que foram eleitos pelo próprio povo.Você acha que a América Latina estaria usufruindo desta democracia se não tivesse existido uma geração de pessoas dispostas até a pegar em armas para derrubar as ditaduras “made in USA” que infestavam o continente? Eu acharia muita pretensão de minha parte se pensasse dessa forma. A marcha da história é muito complexa para pensar que as coisas são lineares assim. Penso que muitas coisas ainda não foram resolvidas neste continente como a questão da fome, da distribuição de renda, de mais políticas sociais, enfim, de tanta coisa que ainda falta.. No seu site pessoal há uma interessantíssima HQ mostrando um episódio autobiográfico em que você escapou de ser assassinado pelo exército Somocista graças um gibi do Homem-Aranha. Como foi essa loucura? Podemos dizer que naquele momento a arte se confundiu com a vida e um herói de Quadrinhos realmente o salvou da morte? Pois é. Eu coloquei isso na HQ Longo Weekend e realmente aconteceu como está descrito nela. Isso foi na minha volta do treinamento em Cuba. Mas coisas como essa me aconteceram várias vezes. O engraçado do Longo Weekend foi que comecei como uma história experimental e quando vi já tinha tomado forma completa. Sem roteiro pré-definido acabou fechando como uma história bem legal, a melhor que já fiz. Depois até tentei fazer outras histórias com episódios curtos, mas não consegui, como se me tivesse dado um branco. Voltando à pergunta, escapei por pouco e nunca mais vi aqueles colegas que foram obrigados a descer do ônibus. Devem estar enterrados em alguma fossa coletiva, das tantas que existiram na época. Você deve ter ficado eternamente grato ao Homem Aranha e à dupla Stan Lee/John Romita por isso, não (risos)? Já pensei em escrever pra eles várias vezes, mas sempre acabei desistindo. Mas só o fato de ter feito a história já é uma forma de agradecimento, né? Você já tinha vontade de fazer Quadrinhos mesmo quando estava na guerrilha? Acredita que se não tivesse vindo para o Brasil, hoje você seria um quadrinhista bem sucedido na Nicarágua? Como todo moleque da minha época, gostava de quadrinhos. Peguei toda aquela fase clássica do Fantastic Four, o Homem Aranha de Steve Ditko e depois do John Romita, Gil Kane e Ross Andru, o Thor do Jack Kirby e o Daredevil de Gene Colan. Literalmente babava para comprar esse material. Ia e voltava da escola a pé uns seis quilômetros só para economizar o dinheiro do ônibus e poder comprar as revistas que depois escondia em pilhas debaixo do colchão. Desenhava os personagens e até fazia meus gibis para os colegas da escola. Naquela época eu queria fazer Histórias em Quadrinhos e escrever romances policiais, mas não tinha condições para isso. E Quadrinhos era algo impensável para se fazer e muito menos para se viver disso. Mas, mesmo quando estava envolvido no exército revolucionário, em alguns momentos de reflexão lamentava ter renunciado a esses sonhos. Quando chegou no Brasil você se tornou técnico de Tae Kwon Do da seleção do Distrito Federal; ganharam até medalha em Copa do Mundo. Como foi essa época de sua vida e onde os Quadrinhos se encaixavam nela? Às vezes você não tem a impressão que existem vários Mários Latinos diferentes, tamanha a doideira que é sua trajetória (risos)? Na universidade eu treinei Tae Kwon Do vários anos até atingir a faixa preta. Quando cheguei no Brasil tomei a coragem de procurar uma academia em Brasília. Quando vi, já estava dando aulas na Asa Norte. Foi enquanto dava aulas nesse lugar que tive a sorte de conhecer o Carlos Eduardo Nogueira Loddo, que era presidente da Federação Brasiliense de TKD e tinha sido o primeiro atleta brasileiro da modalidade a obter uma medalha em Copas do Mundo. Um cara raçudo, o melhor atleta que o país já teve nessa modalidade! Carlos era um indivíduo idealista e eu, lógico, me identifiquei com ele rapidamente. Treinávamos de segunda a sexta, das sete da noite até às dez. Então, Carlos voltou para a universidade e se viu sem tempo para comandar os treinos; falei para ele que eu poderia assumir o comando e ele concordou. Fui treinador do Murilo Rosa ,o ator de TV, que nessa época era um tremendo de um largado boa praça (risos). Olhando para trás, para aquele período entre 1989-1991, penso que com o TKD e com o Carlos tive a oportunidade de começar de novo na vida! Os atletas me respeitavam e eu era novamente um comandante, era firme e rígido, compreensivo e exigente. Todas aquelas habilidades desenvolvidas na minha época de guerrilheiro e militar estavam sendo utilizadas novamente. E como técnico aproveitei ou reaproveitei habilidades esquecidas. E assim meus atletas ganharam o campeonato do Distrito Federal em 1989 e 1990 ! Um dos meus alunos, o Garrincha, foi campeão nacional. Mais tarde, Rodrigo Berrogain, outro de nossos atletas, voou até a Olimpíada de Sarajevo e voltou com uma medalha de bronze. Paralelo à função de treinador eu também trabalhava num escritório de engenharia durante o dia e, no final de 1991, o escritório fechou, coisas do plano Collor, e eu me mudei para São Carlos, no interior de São Paulo. Um amigo nicaragüense me prometera um emprego e fui. O emprego não existia e eu me mantive por um ano dando aulas de TKD. Ganhava razoavelmente e acabei me ambientando na cidade, onde morei até 2002, quando me separei de minha mulher. De fato tenho vivido intensamente. Às vezes me sinto como o andróide interpretado por Rutger Hauer em Blade Runner. Lembra a cena final, quando o andróide está morrendo e se senta no parapeito olhando para Deckar (Harrison Ford)? Ele diz algo assim: “Tenho visto tantas coisas, naves de combate..., e agora essas lembranças serão como lágrimas na chuva” e então, enquanto uma pomba voa, ele morre. Já vivi tantas coisas e não posso contá-las ou não tenho quem as ouça. Mas só por tê-las vivido já valeu a pena. Após essa fase, você decidiu que se dedicaria integralmente aos Quadrinhos? Depois da fase dos tiros e a das porradas, chegou finalmente uma fase mais relax (risos)? Os Quadrinhos ressurgiram na minha vida nas conversas com o Carlos. Ele, por ironia, era fã de Quadrinhos, tinha uma coleção imensa e sabia de cor coisas que eu nem imaginava. Tinha toda a coleção do Homem-Aranha da EBAL, os clássicos de Burne Hogarth, Hal Foster e Alex Raymond, assim como aqueles volumes imensos do Gibi Semanal encadernados. Depois dos treinos passávamos longas horas discutindo e relembrando episódios das Histórias em Quadrinhos. Foi quando comprei uma prancheta e comecei a procurar livros que me ensinassem a arte de desenhar. Novamente, como no Tae Kwon Do, eu chegava um pouco tarde, já que estava com 32 anos quando decidi que me tornaria quadrinista. Encontrar livros que me ensinassem o ofício não foi nada fácil e entender por conta própria conceitos como perspectiva com um, dois ou três pontos de vista era uma tortura. Por outro lado eu também era muito, muito ruim. Trabalhava das oito às seis da tarde, treinava das sete às onze da noite e quando chegava em casa lavava o quimono, comia alguma coisa e ficava na prancheta até as três, quatro da manhã para me levantar no outro dia todo baqueado. Até que em 1992 tive a idéia de fazer um fanzine,o X-Comics, que era uma bela porcaria com colagens, muitos artigos chupados de revistas norte-americanas e histórias de faroeste que eu porcamente desenhei. Mas até que teve boa aceitação e eu passei então, na maior cara de pau, a dar aulas nas oficinas culturais de São Carlos sobre roteiros e Histórias em Quadrinhos. Em 1993 torci o joelho e parei com o TKD e passei a viver das aulas de Quadrinhos no Senac e em outras escolas. Em 1995 lancei uma revista de faroeste com o pomposo nome de O Homem do Missouri, que ainda teve uma continuação, e no final de 1996, enquanto me preparava para o vestibular de letras da Universidade Federal de São Carlos, criei Roberval, meu personagem mais popular. Comecei a publicá-lo num Jornal de São Carlos e aí o editor me falou que seria bom fazer duas tiras diárias, então criei o Capitão Trovão. Ao mesmo tempo fazia também a charge diária do jornal. Alguns meses depois eu já estava fazendo quatro tiras diárias. Escrevia também uma coluna sobre Quadrinhos que saia aos sábados e ocupava toda a quarta página do caderno de cultura. Era uma página com um visual do cacete, como nunca vi fazer em nenhum jornal. Foi quando tive a idéia de lançar uma revista com aquelas tiras todas. Conversei com o então diretor do Senac e ele se entusiasmou, assim nasceu o Graphiq, em março de 1998, que foi até o número 20, em junho de 2000. Em 2002 meu casamento acabou e terminei o curso de letras. No início de 2003 mudei para Suzano e casei de novo (risos). Você tem muitas paixões nos Quadrinhos. Fale um pouco dessas séries e autores que te inspiram tanto. Noto que você tem uma queda forte pelo faroeste e é grande fã de Ken Parker. De fato eu tenho uma tendência para gostar de histórias bem contadas, uma característica que é mais evidente nas Histórias em Quadrinhos clássicas. Pega uma tira de Roy Crane como Capitão César ou Buzz Sawyer para você entender o que estou falando. Ou aquelas histórias do Fantasma de Lee Falk desenhadas por Ray Moore. Gosto da Modesty Blaise e também da maior parte das coisas da Marvel dos anos 60. Nos anos 90 aprendi a gostar do trabalho do Mike Mignola, o Sombra de Howard Chaykin (assim como outros trabalhos deste artista), Walter Simonson e tudo o que ele toca, Joe Kubert e Barry Windsor Smith. Tardiamente descobri o trabalho de Alberto Breccia (a quem conheci na primeira Bienal de Quadrinhos em 91 em RJ), Sampayo e Muñoz (argentinos), José Ortiz, Ivo Milazzo e Goran Parlov. Mais recentemente descobri o traço supremo de Alex Toth, para mim o melhor de todos os artistas de Quadrinhos, e no desenho de humor a qualidade do traço com bico de pena de Hank Ketcham. E dos desenhistas brasileiros o traço e qualidade narrativa dos trabalhos de Laerte, cada dia me surpreendendo mais, Luís Fernando Veríssimo e Fernando Gonsales, entre outros. Minha queda pelo faroeste é meio genético, veio do meu pai. Com ele vi quase tudo o que o gênero produziu para o cinema e séries antológicas como GunSmoke,que é um paradigma. E acabei encontrando essa magia em Tenente Blueberry, de Moebius, e ainda mais em Ken Parker. São séries bem diferentes, já que as histórias do tenente exaltam o heroísmo em aventuras cheias de tensão e angústia enquanto as de Ken Parker enfocam mais o humanismo, o homem e suas fraquezas. E isso é algo que conheço bem! Acredito que suas experiências com a guerrilha, as artes marciais e outras loucuras que você viveu devam ter te marcado muito. Como essas experiências se manifestam nos seus Quadrinhos hoje? O mais óbvio seria você ter um personagem guerrilheiro e um judoca, mas você não tem nenhum dos dois, né? Para ser franco, não sei se isso se reflete no que eu faço. Talvez porque, apesar de ter desabafado muito nesta entrevista, geralmente sou pouco dado a falar de mim. Primeiro porque poucas pessoas entenderiam e segundo porque vi e conheci pessoas melhores que eu vivendo e morrendo como heróis. Talvez isso esteja relacionado com a nossa maneira peculiar de ver o mundo, a vida e a morte. Há alguns elementos do catolicismo que explicam esse fenômeno, o da morte como algo desejado. Claro que não todo tipo de morte, mas a do herói que se imola para que outros vivam. O fato é que houve momentos na minha vida em que eu procurei a morte como um possesso. Criar uma personagem desse tipo seria meio narcisista, não? Até agora o Roberval tem sido a melhor forma de explicitar o que eu sou, minha capacidade de observar o mundo sem querer ensinar nada para ninguém. Não acho que tenho esse direito. Sua vida daria um livro espetacular.Quando você vai escrevê-lo? Ou melhor, quando você vai quadrinizá-lo ? Há um tempo um cara me escreveu uma mensagem que dizia assim: “Muito velho para novas aventuras, muito jovem para relembrar”. Não é legal? Até pensei em escrever esse livro, mas aí pensei se teria leitores. Quem entenderia hoje a realidade em que me movimentava, o mundo daquela época? E como te falei, depois de O Longo Weekend, nunca mais consegui fazer nada nesse sentido. Às vezes acho que estou marcando touca, já que minha vida realmente daria uma boa História em Quadrinhos. Vou te contar um fato engraçado. Quando eu não te conhecia pessoalmente e nem a sua história de vida, eu lia seu personagem Roberval e achava que era autobiográfico, que você era idêntico ao personagem, gorduchão, caipirão e bigodudo.Aí te conheci e vi que não tinha nada a ver (risos)! De onde veio a inspiração pra esse personagem tão forte pra você, já que ele e seu filho se manifestam em praticamente todas as suas séries, trocando apenas de nomes? Bem, eu me acho igualzinho a ele. Bigodudo, gordo e caipira se este termo significa alguém que não liga para bens de consumo e essas coisas todas que são a aspiração do exemplar típico de macho da classe média, aquele que não se separa de seu cartão de crédito. Mas Roberval e eu somos iguais em muitos aspectos. Gostamos de curtir a paisagem de fim de tarde, de assistir a um bom filme de bangue-bangue enquanto os otários se apertam nos vagões do metrô, nas metrópolis, só para pagar o carnê da prestação ou ler um livro de James Bond sem que ninguém me diga que tenho que fazer alguma coisa, como levar o lixo pra rua ou pintar a casa. O filho do Roberval é inspirado na minha enteada Naira. Houve um tempo em que não nos dávamos bem e boa parte das tiras foram inspiradas em situações reais. A minha enteada quando criança era o capeta, assim como eu também era nessa idade. Mas hoje nos damos muito bem. Ela está se formando em geologia na USP e acabou de passar num concurso da Petrobras. Ela, de certa forma, supre a carência dos filhos que perdi e sou grato por ela ter surgido em minha vida. O que você está produzindo no momento e quais seus próximos projetos? Criar mais um personagem com a cara do Roberval (risos)?!? Recentemente acabo de lançar o primeiro exemplar do Jornal Graphiq (nome original, não? risos). São três mil exemplares com 12 páginas de Quadrinhos, matérias sobre cartunistas e entrevistas de primeira qualidade. Distribuí em Suzano e sumiu que nem água. Guardei alguns exemplares e quem quiser pode enviar convenientemente camuflada a importância de dois míseros reais a meu endereço postal aos cuidados de Mário Latino, Caixa Postal 213 – CEP 08675-970 - Suzano-SP. O segundo número sai agora em janeiro. Também tomei coragem e escrevi um romance policial, chamado Aqui os dias são chuvosos. Modéstia a parte, ficou muito bom, bem melhor que muita coisa que já li. Neste momento estou correndo atrás de uma editora. E depois dessa empreitada já estou escrevendo uma narrativa de espionagem e estou quase na metade. Deixe um recado final para a galera. Agora que você falou, acabei de lembrar de um poema de Leonel Rugama (que também morreu na guerrilha nicaragüense) que sempre me marcou: “Nací em el mes más crudo de la siembra sin más alternativa que la lucha”. E esta frase que é minha e que poderia servir como meu epitáfio: “Quem não tem porque morrer não tem porque viver”. Para encerrar quero dizer que foi uma grande honra para mim entrevistá-lo e receber um prefácio seu para meu livro do Roko-Loko, Born to be wild!. Tenho orgulho de ser seu amigo porque sei que outro cartunista-guerrilheiro, ó... nunca mais!!! Pô,Marcio, a gente é como irmãos! Desejo que o Roko-Loko estraçalhe nas paradas, mais do que tem feito até agora! Valeu! O Bigorna.net agradece a Mário Latino pela entrevista. Visite o site do quadrinhista. |
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