Há uma amiga minha, a Kátia, que é dentista. Ela tem para si que fazer uma prótese não é colocar de qualquer jeito um dente substituto na boca do paciente e pronto. Da mesma forma como o dentista precisa do boca-a-boca dos seus clientes, para que outros clientes venham indicados, com um conceito já pronto na cabeça (do tipo: "olha, aquela dentista é ótima, vai lá, toma aqui o cartão dela"), nossa produção de Quadrinhos não pode incorrer nesta seara do "de qualquer jeito".
Se pensarmos que o público está muito ruim, que não lê mais, que o mercado tá dominado (com autores que despejam de forma hegemônica – ops! – doze a treze títulos de gibis mensais nas bancas de todo o País), que não há saída senão fazer livros caros que sejam lançados para um público X e que fiquem apenas expostos em prateleiras das "gibiterias" e das parcas gibitecas, estamos fritos. Quadrinho é para o povo, sim senhor! E povo gosta de coisa boa, parafraseando o Joãosinho Trinta. E Quadrinho tem que ser bom e barato, como dizia um outro amigo meu, o ator e diretor Edson Martins, quando se referia a como teríamos que vender Teatro Amador (ou não-profissional, como quer o autor alemão Manfred Wekwerth).
Da mesma forma como as próteses, que substituem dentes antigos ou que preenchem alguma lacuna, a lição que podemos tirar disso é a de que nenhum Império, nem mesmo Roma, ficou até o fim. Mesmo aos poucos, Roma foi substituída, como as próteses fazem com os dentes. E no lugar da hegemônica – ops! – cidade latina, apareceram os diversos reinos bárbaros. Isso tudo deu início à Idade Média. Oba! Claro que alguns dentes chegam mesmo a minar as possibilidades das próteses, e todo mundo aqui lembra o caso do gibi do Marcatti. A idéia do relançamento da nova revistinha (a prótese) de produção independente do Fráuzio em bancas próximas a estações do Metrô paulistano era genial. Mas o poderio econômico (ou hegemônico?) dos dentes cortou a história pelo ovo.
Pois bem, próteses e dentes à parte, o que sobram são os nossos Quadrinhos. Pelo menos os daqueles artistas que um dia se viram publicados, ou ainda aqueles outros que só conseguem chegar ao grande público apenas por meio de grupos de hegemônica grandeza. Ops final. Só para terminar... Os bárbaros não tiveram medo algum de Roma, muito pelo contrário, foram invadindo pelas bordas, exatamente como a criança faz para tomar o mingau. Os queridos Al Ries e Jack Trout, que já citei em outro artigo, disseram em seus livros Marketing de Guerra I e II que, se não podemos encarar o inimigo frontalmente por causa do poderio dele, pelo menos podemos entrar pelos cantos. Foi o que fizeram os bárbaros. Lembremos. Próteses substituem dentes. E muitas vezes são até melhores do que eles.
Historinha apavorante
Pretendo citar essa história uma outra vez, ainda, em algum outro lugar: o meu afilhado, Lucas, chegou uma noite dessas com um pedido de ajuda. Uma historieta para fazer, por que a professora de Lingua Portuguesa pediu. Aquilo me intrigou, a princípio, e vou tentar reproduzir aqui a seqüência do diálogo travado entre nós dois:
EU – Claro que te ajudo com essa historinha, mas me diga... pra quando é que é esse trabalho?
ELE – Segunda-feira. (estávamos num sábado, algo assim)
EU – E quando foi que ela passou isso pra vocês?
ELE – Sexta.
EU – Peralá, Lucas! Não vai me dizer que ela pediu pra vocês fazerem uma historinha em Quadrinhos na sexta pra vocês entregarem na segunda!
ELE – É.
EU – E ela deu um tema, ao menos?
ELE – Não. É tema livre.
EU – Tema livre? Uma História em Quadrinhos? Para vocês fazerem num fim-de-semana?
ELE – É.
EU – Sei... (e aí veio minha pergunta fatídica) E ela ao menos ensinou a vocês como é que se faz uma História em Quadrinhos?
ELE – Não.
Sei que não precisa ir muito além desse diálogo para percebermos o pavor dessa criança, e de todos os coleguinhas dele. Algo assustador: como um professor passa tamanho tipo de atividade para um aluno (lembra-se do "de qualquer jeito"?) sem que tenha explicado a ele como fazer? Quadrinhos, sabemos nós, é uma linguagem com uma gramática toda própria. Agora imaginemos quantas vezes essa atividade é proposta a quantas outras crianças? A pergunta é: será que só porque lemos Quadrinhos desde a infância é que eles são feitos "de qualquer jeito"? São fáceis de fazer? Assim, do nada?
Historinha Triste
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Donald e seus sobrinhos em dois quadros de uma HQ americana |
Soube pelos clippings do Marcus Ramone que dois títulos Disney caíram nos Estados Unidos. Os que sobraram são tão poucos (um deles, ufa!, é o clássico Walt Disney´s Comics and Stories) que aqui no Brasil temos até mais títulos Disney do que no próprio País de origem deles. Não é romantismo, não. É a percepção de uma infância substituída – como os dentes-de-leite – por heróis destrutivos, sanguinolentos, televisivos, midiáticos, intranscendentes e com alguns decibéis a mais. Um novo tipo de prótese.