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Personagens Históricos: eles também são nossos
Por Ruy Jobim Neto
04/09/2006

O 14-Bis de Santos-Dumont


Uma das minhas inúmeras conversas telefônicas com o cartunista, sócio e amigo Sergio Morettini fez, literalmente, cair a ficha. Nesse papo falávamos das comemorações, das efemérides e de como qualquer povo as comemorava. Entre nós, brasileiros, por exemplo, nenhuma indústria de brinquedos fez réplicas do "14-Bis" para as crianças brincarem de Santos-Dumont neste centenário 23 de outubro de 2006, o dia em que voou o primeiro aparelho mais pesado que o ar. Sem querer, enfim, traçar paralelos ou mesmo sem ter termos de comparação, mas os americanos (e mesmo os franceses) com certeza venderiam miniaturas da Estátua da Liberdade e da Torre Eiffel, para comemorarem as respectivas datas de duzentos anos das Revoluções Americana e Francesa.
 
Na mesma conversa, falávamos os dois acerca do nosso mais recente filhote, o Projeto A História na Ponta do Lápis, um ciclo de palestras-workshops onde seriam ensinados os conceitos de Humor Gráfico (charge, caricatura, tira cômica e cartum) através dos nossos vultos e dos fatos históricos. Nesse raciocínio, estarão contemplados pelo projeto alguns grandes momentos de nossa extensa aventura de cinco séculos, a exemplo do Quilombo de Palmares, das Entradas e Bandeiras, da chegada da Família Real portuguesa, do Brasil Holandês ou mesmo do aeronauta brasileiro, Alberto Santos-Dumont. Mas, no prosseguir da conversa, descobrimos que a intenção do projeto vai muito mais além. Porque pobre seria nossa intenção se pensássemos apenas em ensinar como se faz uma caricatura. Não é esse, felizmente, o foco central da nossa idéia enquanto projeto.
 
Caiu a seguinte ficha - a de que muita gente, neste País, sabe-se lá por que razão deixou de gostar, de curtir, de comemorar os grandes processos da Nossa História. Muito bem, alguns diriam que detestavam a disciplina no colégio, mas talvez (e isso poderiam confirmar) tivessem tido professores insuportáveis em sala-de-aula, aquele tipo de gente despreparada e sem o menor amor pelo que faz, e que detona o carinho por essa ou aquela matéria na cabeça e no coração dos alunos. Em geral, História, enquanto disciplina escolar, vira vítima preferida do pessoal justamente porque, para estudá-la, é preciso compreender os processos e não as datas em “decoreba”, e além disso há toda a ligação entre causa e efeito (o quê? Isso seria um horror!), ou seja, o pensar, o raciocinar sobre aquilo que um dia foi e como tudo isso acabou ficando.
 
Pois bem, se você não tem condições de apreciar os processos históricos, como vai entender uma notícia de jornal hoje em dia sobre, por exemplo, o que acontece no Oriente Médio? Como entender o que (ainda) se lê nos jornais, nas revistas ou na Internet? Ler e raciocinar já estão se tornando raros, em nossa era. Estão caindo de moda, acreditem, para nossa infelicidade. Sem eles é impossível penetrar nos mundos antigos, aqueles mesmos mundos que explicam como e porque somos o que somos hoje. Por isso é necessário fazer algo, nem que seja em ritmo de formiguinha. Mas rápido. Assim, a prática da arte-educação, ao procurar mostrar às pessoas como se faz um cartum, uma charge, uma tira cômica e uma caricatura se enriquece não somente pelo tema histórico em questão, mas principalmente por um sentimento de posse. Eu tenho Canudos. Eu tenho Santos-Dumont. Isso tudo faz parte de mim e está em mim, eu faço parte disso e disso sou constituído. No momento em que um desenhista-aluno começa a reinterpretar, em seu traço, esse ou aquele processo de Nossa História, esse ou aquele personagem, ele está assumindo como seu esse processo, esse personagem, esse homem brasileiro que ali esteve e que ali lutou. E do qual herdamos um País. 
 

Antonio Conselheiro

Não se trata de patriotada. Muito menos de um orgulho nacionalista construído de modo artificial, mas sim de um sentimento de posse. E de que somos tudo isso. Transcende, portanto, a tudo o que somos, temos ou conhecemos. É História, e no caso, a nossa. Dessa forma, no mesmo instante em que eu desenho Monteiro Lobato, Emília, Anita Garibaldi, Ana Nery, Getúlio Vargas, Antonio Conselheiro, os casebres do arraial de Canudos, tudo isso vira personagem, tudo isso me pertence, assim como eu pertenço a tudo isso. Somos parte um do outro. Há uma intrínseca razão de ser e existir. Esta sensação está lá embaixo, enfronhada, escondida. Mas está lá. Se possível for, ao menos, minimamente conseguir espalhar esse pólen, a idéia de que todos eles também são nossos, podemos começar a acreditar num povo. A beleza de um folclore, de uma parlenda, de um livro de Câmara Cascudo, de uma peça teatral de Ariano Suassuna, de mil histórias dentro da História (ela mesma, com "H" maiúsculo), algumas ainda por serem descobertas, todas tão belas, é o que nos faz brasileiros.
 
O fato de não termos ganhado uma Copa, aliás, de termos saído dela com a sensação de absoluta perda, é pra lá de positivo. Esse fato só nos vem ensinar que não é o gol de um artilheiro, tornado herói instantâneo, artificial, midiático, que há de mudar nossos rumos enquanto País. Se esquecermos o absolutamente hoje e olharmos, vez por outra, para trás e para frente como um processo, teremos em mais o que pensar. Teremos muito mais gente a quem agradecer. E isso nos fará sentir, enfim, um pedacinho a mais dessa grande aventura. 

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