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Por Gazy Andraus 26/06/2006 No mundo conturbado da atualidade, as informações se cruzam e dominam as comunicações humanas com tecnologias cada vez mais possantes e variadas. As pessoas correm de cá para lá, e consultam celulares, computadores, não só se comunicando através de sons, mas inclusive por imagens. Porém, a urgência e a pressa nas atitudes humanas, reflexo de uma correria tresloucada cujo fim é sempre o de alcançar uma almejada e paradoxal “paz”, esbarra numa condição vivencial que encontra eco na lenda de Sísifo: rolamos nossas “pedras” (problemas) até o cume de uma montanha para, quase ao fim, estas pedras sempre nos escaparem e rolarem colina abaixo, pedindo-nos que realizemos a tarefa de novo, e de novo e de novo ad infinitum... A reflexão e ponderação foi deixada lá atrás (com as pedras) quando os gregos usavam seu tempo para refletir, pensar e hipotetizar, resultando em muitas considerações que encontraram respaldo até os dias de hoje. Talvez seja para tais reflexões e ponderações que existam os museus e as exposições: a que as pessoas ainda reservem um pouco de seu tempo para perceber as coisas como elas podem ser, além do que elas aparentam. O mesmo pode-se aventar quanto aos desenhos: no ato de desenhar reside algo fenomenal e “mágico”, que é desvelado a cada movimento que o artista deflagra na superfície, criando o novo: um universo que surge como um big-bang do “nada” branco da folha de papel... Assim, quando estes desenhos contam uma história, um fato, uma “maquinação mental”, tudo se torna mais mágico e misterioso, pois as imagens que saltam são representações pessoais de um universo sempre particular, com estilos pessoais e traços que podem causar apreço ou até repulsa; podem apaixonar, mas também podem afastar... As Histórias em Quadrinhos são essa arte visual em que os autores têm pleno poder de criação de forma livre, e em que universos explodem como que para preencher uma lacuna que insiste ribombar na mente de seus criadores: a do desejo, do desígnio de viver no tempo presente da bem-aventurança, do carpe diem! E nada mais democrático do que o direito da expressão...e também o de fruição! Assim se dá esta exposição de História em Quadrinhos acerca da Democracia Espanhola, deflagrada desde 1975, e que, apesar de seu caráter intrínseco, não deixa de ser universal (tanto a democracia como a exposição de HQ). E são vários os motivos. No caso específico das HQs, um primeiro fator é devido ao caráter comum dos desenhos e do próprio ato de desenhar, facultado a todos os seres humanos, desde sua mais tenra infância. Junto a este motivo, reside o poder da imagem, da narrativa, que vem embalando os infantes, desde tempos imemoriais da espécie humana: a contação de histórias, seja através de gestos, murmúrios, grafes, sinais, desenhos, palavras, frases, filmes, músicas, etc. é o carro-chefe que puxa a humanidade em seu caminho desenfreado e sem rumo, quase como uma condição sine qua non inscrita em sua psique. Assim, pode-se dizer que a função de uma exposição é a de manutenção mental do ser humano, impedindo-o de se afogar totalmente nas vicissitudes e intempéries naturais e/ou artificiais que sua vida regrada com base em um sistema racional cartesiano tem sido contemplada (para o bem ou para o mal). E uma exposição de Histórias em Quadrinhos tem mais louvor ainda, já que resgata aquele estado anterior da psique básica, aliando aos desenhos a narrativa, cujas estruturas residem algures na mente humana desde os primórdios de sua existência – e desde os primeiros momentos em que a visão da criança principia a perscrutar e a esquadrinhar o mundo que a rodeia. Um dos mais atentos pesquisadores e defensores dos quadrinhos, o francês Groensteen, já afirmou que o ser humano precisa sair do estado de analfabetismo icônico ao qual se encontra, para aprender a usufruir do desenho, e eis aí mais um imperativo a que se visite esta exposição. Ao adentrar o recinto do prédio em que se encontram as pranchas de HQs, o visitante se depara com uma disposição em que elas se encontram envoltas a molduras, tal qual obras de arte. Ao mesmo tempo, vários cartazes identificam os períodos de suas publicações relacionando-as aos eventos históricos, e situam os avanços que as Histórias em Quadrinhos foram tendo desde a década de 1970, inclusive nas suas valorizações como arte, e como produtos de mentes autorais de temáticas adultas. Esta suntuosidade remete a um estado de nobreza, como as obras de um MASP ou de um Louvre. Porém, o detalhe que diferencia os quadrinhos de outras obras artísticas reside justamente no detalhe! Ou melhor, nos detalhes: o observador terá que se aproximar prancha a prancha e não só ler as páginas, mas principalmente deter-se e se deixar envolver pelos traços, pelos contornos e desenhos, pelos momentos em “branco” que os vãos entre os requadros das cenas vão lhe sugerindo... quase como uma metáfora de sua própria vida, já que parou seu movimento tresloucado e cedeu à “inação” contemplativa, em um mundo novo, surreal e distinto, assim que resolveu investigar esta exposição. Nela, o observador ainda descobre que os autores vão delineando as passagens com seus personagens, numa narrativa seqüenciada que o desenho, muitas vezes impregnado de uma “realidade” inerente, parece saltar e se movimentar a seus olhos, como se estivessem vivos. E isto se reforça não somente a cada quadrinho, mas também quando o olhar adentra cada desenho, cada detalhe, até a “profundeza” dos limites das linhas, que perfazem, por exemplo, a expressão facial de um homem desesperado, como na primeira HQ da exposição, !País...! de Gimenez. Esta situação só poderá ser percebida se o leitor/observador deixar fora da sala sua urgência, e principalmente resolver sinergizar-se pelo envolvimento com as linhas, pelos claros e escuros, pelas áreas contrastantes e tintas (muitas tintas, como nanquim e acrílico); só assim a alma humana poderá perceber as nuances de estilos e técnicas, e as idéias e visualidades que os artistas de HQ expuseram. E aí, perceber-se-á que, sim, são artistas e aqueles quadrinhos dentro de um quadro são também artes! Das mais puras e sutis! Interessante se faz distinguir a atitude de um ocidental frente a uma pintura, e um chinês frente a uma arte ideográfica: os chineses observam e absorvem os traços do que observam absortos, imitando com gestos as pinceladas dadas pelo artista, quase em movimentos sinuosos similares aos que são executados por adeptos do tai chi chuan... aqui talvez resida alguma questão quanto à formatação mental-cultural, e a ativação de determinadas áreas dos hemisférios cerebrais esquerdo e direito, estimuladas no caso, pelos desenhos, ainda pouco percebidos quanto a seu grau distinto de informação. Esta exposição é bem didática também no que se refere à percepção das qualidades inerentes e estéticas sui generis das Histórias em Quadrinhos, e deveria ser visitada por todas as escolas, mas principalmente por adultos de todas as profissões, já que a arte é universal, e a pressa, como se diz, “inimiga da perfeição”. Pois é na pressa que se alimentam mal e exageradamente as pessoas, e é na pressa que não param a fim de averiguarem momentos solenes e quiçá necessários à alma humana, como um pôr do sol, ou então, não percebem o valor fenomenal de uma exposição como essa, cravada bem no meio de uma avenida efervescente, fruto de um sistema que privilegia exclusivamente os empreendimentos financeiros, logo, a pressa, a “realidade” material, e muito pouco a realidade mental, que se sustenta também na arte. Para finalizar, aos conhecedores da arte dos quadrinhos, também chamada pelos espanhóis de Nona Arte, desfilam nesta grandiosa exposição artistas do mais sofisticado gabarito, como C. Gimenez, Leo Sanchez, L. Garcia, Nazário, Daniel Torres, Victor Mora, Miguelanxo Prado, Azpiri, Esteban Maroto, Alfonso Font, além de muitos outros, sendo que alguns desconhecidos do público brasileiro, mas não menos prenhes de criatividades e técnicas sofisticadas. Enfim, uma aula acerca da narrativa imagética, e de seu poder informacional a serviço não só da consciência crítica, mas principalmente, estética. A exposição A História em Quadrinhos da democracia Espanhola, está no Espaço Cultural do Instituto Cervantes, na Avenida Paulista, 2439, Metrô Consolação, às segundas-feiras, no horário das 14h às 20h, terças a sextas das 08h às 21h, e sábados das 09h às 15h, até dia 7 de julho de 2006. |
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