Patoruzú é, junto com Martin Fierro, o grande personagem nacional argentino. E, como temos o estranho costume, aqui no Brasil, de não conhecer a cinematografia realizada para todas as idades nos países vizinhos, só temos a lamentar que um filme tão simpático como Patoruzito, dirigido em 2004 por José Luis Massa, nunca tenha aparecido em nossas salas de cinema. E nem tenha sido distribuído para o DVD, entre nós.
Fica estranho também comentar um filme que ainda não chegou aqui (embora já faça dois anos que tenha estreado) e que nem temos previsão. Uma cópia em DVD está sendo exibida, aos finais de semana de fevereiro, na cidade de São Vicente, no Litoral Sul de São Paulo, dentro da programação da 1ª Mostra Trinacional da Nona Arte, capitaneada e de curadoria brilhante do amigo jornalista e divulgador de quadrinhos, Marko Ajdarić. A mostra traz quadrinhos brasileiros, verdadeiros clássicos, além de italianos (alguns originais vieram da Europa) e mesmo os argentinos. E também é um pecado, na realidade, passar batido e não comentar tal evento.
Primeiro pela união, quase insólita, numa cidade litorânea e turística, de uma mostra de quadrinhos (a Nona Arte do nome do evento) para um público que está passando o finalzinho das férias (uma vez que nossas atividades, neste País, parecem sempre começar depois do Carnaval, sabe-se lá porquê), e num momento de grave queda, uma queda forte e incisiva, do nível de leitura, em escala mundial. Até mesmo de quadrinhos. O fato de o evento existir é um luxo em si. E tomara que outras cidades, Brasil afora, possam convocar a mostra e tê-la para exibição. O público merece.
Voltando ao tema inicial, o dos filmes argentinos, pouco ou quase nada se sabe aqui dentro, da cultura argentina. Entidades como Evita ou Gardel já viraram mitos. A Argentina é muito mais do que isso. E a grande cinematografia realizada nas paragens platinas traz nomes como Juan Jose Campanella, Lucrecia Martel, Carlos Sorín, Adolfo Aristarain, Luis Puenzo, Marcelo Piñero, Alejandro Agresti e tantos outros. E eles conhecem alguma coisa da gente. Nós é que prestamos mais a atenção em obviedades como Schwarzenegger, Bruce Willis, Van Damme, e outras coisas do cinemão americano, ao invés de olharmos para o nosso lado.
Para assegurar como o Mercosul, que na área comercial e diplomática, vez por outra, é ora um acerto, ora um desastre absoluto, temos que reparar que na área cultural ele nunca existiu. E mesmo os esforços (que caíram por terra, pelo visto) do INCAA argentino e da Ancine brasileira, as duas agências de fomento e regulação do mercado cinematográfico de ambos os países, de criar aos poucos uma interação entre as duas cinematografias, parece mesmo que morreu na praia.
A idéia parecia simpática. As agências tinham como agenda a estréia de dez a doze filmes argentinos em grande escala por aqui, enquanto a mesma quantidade de filmes brasileiros estreariam entre eles. Até agora nada foi resolvido, nesse sentido, por mais que as intenções tenham sido as melhores. Não queremos ficar apenas com Carlitos Tevez como embaixador da cultura argentina. Mesmo porque ele não é.
Muito bem, o cinema de animação argentino é também pujante. E tem alma, o que é notório. O argentino gosta de se ver nas telas, e isso é inegável. A agência de fomento do cinema deles, o INCAA, tem promovido bem uma variedade de estilos e temas, pra todos os gostos. Tanto é que, para fazer frente ao longa musical Evita (aquele, com Madonna e Antonio Banderas, com direção de Oliver Stone em cima de libreto e músicas do inglês Andrew Lloyd Webber, lembram?), os argentinos produziram outro Evita, o deles. E vaiaram o filme de Stone. Este sentido forte de patriotismo nos falta.
Patoruzito (o personagem da foto acima) é uma graça. O desenho animado tem bom roteiro, bons animadores, mescla animação 2D com a de 3D (traduzindo: 2D é a animação tradicional, como Tom & Jerry e Flintstones e 3D é o uso da computação gráfica como em Toy Story ou Procurando Nemo). Enfim, além dos personagens clássicos do quadrinhista Dante Quinterno, o longa tem boa música (de Eduardo Frigerio, incluindo alguns coros, que dão o tom grandiloqüente e de epopéia) e, acima de tudo, tem alma. A produção do longa é da poderosa Patagonik Film Group argentina.
O acerto do nosso Marko Ajdarić em trazer essa cópia deste simpático filme de José Luis Massa, única no Brasil, é como um tapa com luva de pelica. A primeira vez em que Patoruzito foi exibido em nossas plagas foi no sábado, dia 4 de fevereiro, praticamente dois anos depois da estréia argentina, como já dissemos. Vamos ver quanto tempo depois este filme chegará (se é que chegará) às nossas locadoras de DVD.
Para terminar o lamento pelo Mercosul que insiste em derrapar, em andar sobre um atoleiro, quero lembrar duas coisas: o fato de que o projeto que parece interessante, de integração da América do Sul com gasoduto, da Venezuela até a Argentina, é na verdade meio estranho. Se querem fazer a integração do continente, pelas intenções de Hugo Chávez, Nestor Kirchner e Lula (entrando de sola o não menos presidente Evo Morales), por que um gasoduto teria que sair da Venezuela e percorrer o litoral brasileiro para depois, finalmente, chegar ao Paraguai e à Argentina? Ele não poderia ser ainda mais integrador e cruzar, de norte a sul, o continente, passando pela Venezuela, Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, para ser até mesmo mais econômico? Ou querem evitar a temida floresta amazônica e uma nova Madeira-Mamoré? Muito estranho...
E, por último mas não menos importante, lembrar a frase que o professor da USP Jean-Claude Bernardet, de Cinema Brasileiro, disse sobre as cinematografias brasileira e argentina. Bernardet, numa entrevista, falou que o cinema argentino se aproxima mais do europeu, não pela beleza plástica, mas por sua humanidade, por sua alma, por seus roteiros bem delineados, suas histórias para contar, seus bons personagens. Sobre o nosso cinema, o professor fala que já dominamos o bom som e a boa fotografia, a boa direção de arte, as boas técnicas, e que nisso queremos ser talentosos demais, mas que estamos nos esquecendo da alma, da humanidade, das boas histórias, dos bons personagens, isso numa amplitude de visão. E ele então diz sua frase: "cineastas brasileiros! Sejam menos talentosos!".
É uma tolice o nosso público exigir que tenhamos filmes de orçamentos e enredos, efeitos especiais e uma grande venda como a do cinema americano. Já disse Bruno Barreto: "o que falta ao cinema brasileiro é quem saiba vender". Mas, pela frase de Bernardet, falta ainda algo mais profundo. Falta-nos a alma. E nisso Patoruzito, este tão desconhecido filme do tão desconhecido vizinho platino, tem de sobra.