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Entrevista com os editores da revista Kaos!
Por Eloyr Pacheco
13/07/2005

As perguntas para este "bate-papo" foram elaboradas a partir de minhas impressões quanto a edição #1 da revista Kaos! assim que a li para fazer a resenha publicada aqui. A edição #2 foi publicada e o terceiro número que concluí a série de três edições prometidas, deve ser lançado no início de agosto.

A entrevista inicialmente planejada com poucas perguntas acabou tornando-se longa devido a prolixidade dos editores. Na resposta do Jean, por exemplo, eu não mudei sequer a abertura de parágrafos que ele fez. As respostas foram dadas, sem meio-termos. Aproveite!

Como surgiu a idéia da revista Kaos, Sam? Como foi que tudo ocorreu, desde a formação da equipe até a revista estar impressa?

Sam Hart - Jean Canesqui, Sandro Castelli, Anderson Cabral e eu, nós conhecemos na revista Front, que é um álbum publicado pela Via Lettera, feita por quadrinhistas por meio de uma lista de discussão on-line. É um projeto muito interessante, aberto a todos que queiram participar, e ao longo da elaboração das histórias há a possibilidade de debates, comentários, críticas, etc, até escolher o material que vai para a edição impressa. Acontece que também dá muito trabalho, e às vezes toda a discussão on-line distrai dos prazos, divulgação, diagramação, enfim, do lado prático. Mesmo as discussões on-line muitas vezes exigem tempo e paciência. Acho que a Front é uma revista que exige muita dedicação dos participantes.

Enfim, durante três edições do Front, nós quatro estávamos muito ativos na lista e na organização, quando surgiu a conversa de fazer uma edição de banca da Front, que teria material mais comercial. Logo ficou claro, no entanto, que as formas de produção e propostas editoriais de uma revista de banca e um álbum de livraria seriam difíceis de conciliar. Fomos uma dissidência do Front, então. Procuramos a editora Pandora, que publicava material que achamos parecido com o nosso (Wildstorm, Estranhos no Paraíso, Sin City...) e eles toparam publicar. Convidamos amigos e pessoas da lista da Front para apresentar projetos e fazer pin-ups e decidimos fazer somente três edições, porque afinal de contas ninguém estava ganhando um tostão pelo trabalho, e também evitamos os perigos de desgaste dos autores e do público. Caso tiver sucesso, podemos voltar com mais três edições no outro ano.

Ao longo da produção da revista, no entanto, a Pandora parou de publicar quadrinhos e oferecemos então a primeira edição, que estava praticamente fechada, à Mantícora, uma editora de RPG, e depois de algumas reuniões, alguns retoques, um aumento de páginas e três meses, estava na banca.

Ufa! Um ano e dois meses depois da primeira reunião da revista...

Belasco: O Show da Vida e O Homem que Tudo Vê, são duas idéias sombrias e que têm personagens fortes e cativantes. Como você concebeu essas histórias, Jean? Quais são suas fontes de inspiração?

Jean Canesqui - São o ódio e a vida.

O ódio.

Acho que essa paixão pode ser tão construtiva como o amor pode ser destrutivo. Odeio a injustiça. Odeio essa Nova Ordem Mundial em que o mundo naufragou na última década. Odeio nossa covardia em aterrorizar os privilegiados. Odeio nossa relutância em mudar essa pasmaceira toda. O ódio dessa contemplação que me atraí para o lado profano. O lado libertário. O amor aos quadrinhos surgiu exatamente por eles serem esnobados pela elite cultural, por não terem que prestar contas às escolas, tendências, normas e tradições acadêmicas. Os quadrinhos possuem uma liberdade criativa que nenhuma arte atualmente detém. São superiores à literatura, ao teatro, à música e ao cinema. É meu reduto expressivo favorito. Enfim, eu escrevo histórias em quadrinhos para afrontar meu Inimigo. Eu escrevo gibi por vingança.

A vida.

Eu me inspiro na vida para criar. Confesso. Sou um ateu com uma certa simpatia pelo demônio. Logo não acredito nessas besteiras de que a inspiração cai do céu como uma luz divina sobre as pessoas especiais. Todo mundo que conheci que acreditava nisso, e sempre esperou por isso, frustrou-se, largou a criação e foi se dedicar a outras atividades, como "pentear macaco".

Minha inspiração está nas coisas mais simples... São as coisas que observo, que leio, que consumo, que ouço, que vivo. Uma imagem na rua, uma matéria de revista, uma passagem em um livro, uma conversa dentro do ônibus.

Eu sou um dreno do mundo.

Antigamente eu anotava, mas como eu sou desorganizado e tenho o mal de que se eu escrever o tema apreendido em qualquer lugar eu perco o tesão de trabalhar em cima. Prefiro registrar mentalmente e deixar cozinhar na caldeira infernal que é meu cérebro. Ai fica guardado, sendo descaracterizado de sua origem, se somando a outras coisas e
virando mingau. Algum tempo depois recupero essa inspiração e começo a trabalhar em cima, expando ao máximo, depois vou talhando...

Belasco.

Curti tanto o filme "As sete faces do doutor Lô" (nota do entrevistador: Jean se refere ao filme As Muitas Faces do Dr. Lao), figurinha carimbada na sessão da tarde, como o livro do qual ele se baseia - que é muito melhor, mais caótico, meio subversivo e mais sexualmente agressivo. Li também muitas HQs de terror sobre freak shows da EC Comics. E um dia me deu na telha de fazer uma peça sobre um espetáculo desse naipe.

Não deu certo, guardei a idéia na gaveta e anos depois trombei com o Castelli na revista Front. Fiquei espantado pelo seu domínio excelente de anatomia e de monstros fantásticos! Apresentei o projeto, ele topou e aí está o resultado.

O processo: Comecei com a idéia de um show de aberrações e atrações fantásticas. Eu tinha lido na revista Superinteressante uma matéria sobre religião que falava de uns textos apócrifos da infância de Jesus, quando, só por farra, ele matava e revivia seus amiguinhos. Pensei: "E se ele contasse o segredo dessas proezas para alguém? Sabe como são as crianças..." Pronto. Aqui está Belasco.

Potêncius, é uma homenagem ao Superman da Era de Prata, com o topete e o lance dos diamantes. A sereia veio da época da peça, só adicionei os dentes de piranha depois, como chiste. Sempre imaginei que sereias (na verdade tritonas, pois sereias são monstros alados, mas resolvi deixar assim porque tem maior apelo) só pudessem fazer sexo oral... hehe.

A sacada das gêmeas siamesas eu tirei das irmãs aranha de Sandman, que não são siamesas, mas lésbicas, já as personalidades são tiradas dos livros do Marques de Sade, a vítima e a predadora.

O Baal eu retirei dos meus arquivos de notícias sobre violência sexual, a questão do estupro nas prisões sempre me intrigou, quando se estupra um estuprador ocorre uma terrível reverberação da crueldade e da injustiça, é o horror aprovado na forma de vingança e prazer voyeur. E se essa reverberação tivesse eco no ponto final que é o violentador violentado? Surge Baal, o canibal.

A Quimera, eu usei porque quase ninguém usa o inimigo de Belorofonte e porque ela quer dizer também fantasia e ilusão, portanto qual melhor templo para a quimera do que o circo?

Zé Piton eu roubei mesmo das "Sete faces..." e dei um upgrade no bicho para ficar mais pop fashion. Claro que quem deu a concepção de fato foi meu camarada Castelli.

O médico eu tirei de um ex-estudante de medicina que conheci na USP. Ele era negro, pobre e estudou sozinho para passar no vestibular. Passou, não agüentou o isolamento imposto por seus colegas brancos ricos, e acabou se transferindo para a filosofia onde se sentiu em casa... É como fugir com o circo, isto é, largar um curso de status para tentar ser feliz, independente da segurança econômica. Mantive o médico que escolhia, juntei com o resto... Expandi com todas as possibilidades e depois fui talhando até ficar o que ficou.

Tudo observação contínua, pesquisa e trabalho.

As próximas histórias de Belasco, que devem ir para as mãos de um jovem talentosa, Julia Bax:

1 - Uma jornada ao inferno para resgatar um espírito corrupto.
2 - O circo encontra uma cidadezinha do interior maligna como o pecado que deve ser destruída.
3 - Um travesti adolescente de beira de estrada é vampirizado e se casa com o homem forte do circo.

E a origem de cada atração... quando veremos outras maravilhas a ilha tartaruga, a árvore medusa e seu irmão o menino-árvore...

O homem que tudo vê.

Este foi uma somatória maciça. Ingredientes: O filme Show de Truman; uma HQ européia sobre uma detetive que é acompanhada 24 horas por uma câmera; um demônio Cenobita com uma lente fotográfica no lugar dos olhos; a série O homem de seis milhões de dólares, uma vez que mexi com uma câmera oculta na haste de um óculos quando estagiei no SBT e o repórter mosca, aquele que carrega a própria câmera no ombro, quase como perspectiva de uma mente da mídia.

Essas pragas ferveram no meu crânio até aparecer a figura de um repórter com câmeras nos olhos.

O Cabral foi outro amigão que trombei na Front, falei da idéia e ele veio com a concepção visual do personagem e aquele estilão blade runner/matrix/terminal city, com sua maravilhosa arte abstrata. A personalidade de Pedro Zarkoo e o clima da história foram concebidos por nos dois com o tempo.

A primeira história eu tirei de uma hilária reportagem sobre terroristas sexuais. Gente que trocava as falas de bonecos antes de serem vendidos, a Barbie falava grosso e o Comandos em Ação dizia coisas meigas com vozes de menina. Era só zombaria, mas se alguém quisesse fazer terror sexual de verdade como seria? Sexo mortal! Lógico! E daí, a bomba que faz todo mundo transar até morrer... Na segunda história do homem que tudo vê, o argumento é do meu parceiro. Trata de canibalismo, opressão social e fast food. Deliciosa...

A terceira é uma piada que quero fazer com o WTC envolvendo civilizações marinhas oprimidas.

Escrever é um treco mágico, qualquer cretino pode fazer - citando Alan Moore. Só que precisa entender que é um prazer menos sagrado e mais sexual e ordinário. Enfim, criar é largar mão de frescura e se divertir.

Ou alguém duvida que se há um criador, ele não está rindo de nossa cara até agora?

Em Belasco: O Show da Vida você optou por um traço limpo para dar espaço para a luz e sombra que viria a ser aplicada (aliás, muito bem) pelo Fábio Akio, ou esse é o seu estilo, Sandro?

Sandro Castelli - Normalmente, em ilustrações, trabalho apenas com grafite; a partir do esboço vou limpando o desenho, definindo, sombreando e criando texturas, tudo com lapiseira 0.5, grafite 2B ou 3B e esfuminho. Esse é o tipo de trabalho que está na capa da Kaos. Se for preciso colorir, aplico uma layer simples de cor (com variações pequenas de tom, sem muitos efeitos) no Photoshop.

O processo é trabalhoso e demorado; o Jean me deu liberdade quanto à técnica e estilo do desenho, então optei por uma arte mais simples para a HQ: linha clara, finalizada a nanquim. O fato de trabalhar pouco com tinta também me estimulou a utilizá-la. A idéia de aplicar tons de cinza veio da Mantícora, nossa editora, depois de a HQ estar pronta; o Akio conseguiu um resultado muito bom, usando texturas orgânicas, dando profundidade aos cenários e peso às figuras.

Anderson, além de ser o responsável pela arte de O Homem que Tudo Vê, você também assina o argumento ao lado do Jean. Como é escrever uma história em parceria? Como é o processo de trabalho de vocês dois?

Anderson Cabral - A história do Homem Que Tudo Vê começou pouco mais de um ano atrás, quando conheci o Jean. Onde ele me contou que havia uma idéia para um personagem. Um repórter que transmitia sua vida durante 24 horas, possuía olhos cibernéticos e uma rede de intrigas nos bastidores. Daí em diante comecei a trabalhar com o Jean mas não nesse projeto.

Quando começamos a formar a Kaos! e as parcerias foram sendo feitas, perguntei se ele estaria interessado em tirar seu personagem da gaveta brincando: "- Ei! Vamos desenvolver uma história do homem que tudo vê?" Pronto! Surgiu o nome para a série!

Ela fala sobre um personagem que pouco a pouco vai sendo corrompido pela vida que leva. Pode ser pretensioso falar sobre o futuro da série, então apenas saibam que nossa proposta será no mínimo surpreendente.

Trabalhar em parceria em uma HQ nem sempre é de forma harmoniosa. No início do processo criativo, tínhamos propostas muito diferentes. Por exemplo, o Jean preferia dar mais ênfase no lado cotidiano do Pedro, sua relação com sua esposa, neuras do pessoal do trabalho. Eu não acho nada de errado em explorar isso, pois são coisas que ao longo do tempo vão dando estrutura ao universo do personagem. A mulher de Pedro é e será uma personagem de muita importância. Desenvolver ambos consumiria uma boa quantidade de páginas, tirando o ritmo alucinante desta primeira história. Para mim, jogar tudo isso de uma vez na primeira HQ iria dificultar contar a trama principal que é a aventura complexa.

Outro ponto de divergência nossa, foi com relação ao humor da série. O Jean preferia algo mais bem-humorado, piadas mais leves. Eu gosto de uma coisa mais ácida. Um humor-negro proveniente do azar, raiva e constrangimento. Apesar dos contrapontos, estamos muito satisfeitos com o resultado. Uma coisa que concordamos será de não haver tantos palavrões e linguagem coloquial na série, a menos que ela realmente seja necessária.

Contar uma história em quadrinhos resulta de diversas etapas. A primeira delas é discutir qual o tema a ser abordado. Geralmente é seguido possíveis sub-tramas e raciocínios incompletos como um brainstorm, onde várias idéias são citadas. Em seguida o Jean me apresenta um roteiro já com os diálogos e em cima disso eu faço um rascunho das páginas selecionando e alterando algumas das idéias, criando a narrativa visual e o timing de cada uma. Remeto-as para que veja as alterações e sugestões. Geralmente ele vai me pedindo ajustes enquanto eu ainda estou trabalhando! O cara é apaixonado por quadrinhos!

Tudo ok, passo para minha próxima fase que é arte-finalizar os desenhos com nanquim. Digitalizo as páginas, faço os ajustes e retoques diretamente no Photoshop além de aplicar os tons de cinza, texturas e onomatopéias. Para os balões, textos de diálogos e recordatórios eu utilizo outro software, o Indesign.

O conceito do Homem Que Tudo Vê é muito volátil. A meu ver podemos abordar qualquer assunto, falar sobre qualquer coisa, ou seja, temos liberdade de criação onde o limite será nossa imaginação. Ok, muita gente pode achar irrelevante, mas tente levar a sério fazer quadrinhos, tente encará-lo como ele deveria ser visto, como um produto. Verá então que um "universo" mais limitado pode até dar mais trabalho. Não quero depreciar ninguém, apenas citar que no caso do HQTV isso é uma vantagem para o desenvolvimento da série.

O Bigorna agradece aos editores da Kaos! pela entrevista.

Links relacionados:

Revista Kaos!, Editora Mantícora

Veja também:

Resenha Kaos! #1

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