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O Caso Ebal e a ética de se contar uma história ou escrever um livro
Por Gonçalo Junior
29/10/2007

Sem querer generalizar, intriga-me o papel que tem no mercado ou sobre este um bom número de sites e blogs ditos especializados em Histórias em Quadrinhos. Muitos, na verdade, desempenham um papel de mero divulgador entusiasta ou de noticioso dos fatos – leia-se, releases distribuídos pelas editoras. Assim como a imprensa cultural diária, parecem contaminados pela pressa e pela obsessão em ser o primeiro a dar a notícia. Portanto, não importa o conteúdo, a responsabilidade crítica, o que acaba induzindo algumas pessoas a comprarem churrasquinho de gato como se fosse de filé mignon.

Revistas e livros são lançados mas, raramente, faz-se um juízo de valor sobre os mesmos, o que me parece algo de grande relevância e de responsabilidade em relação a seus crédulos leitores. Duas das exceções que me vêm à mente no momento parecem ser o Bigorna.net (resenhas de Eloyr) e o Universo HQ, que mantém a indispensável seção Reviews, onde se costuma apontar aspectos positivos e negativos das publicações, recentes ou não. Ficaria agradecido, por exemplo, se alguém apontasse falhas, equívocos ou discordâncias dos livros que publiquei sobre Quadrinhos, pois tenho consciência de que as cometi. A Guerra dos Gibis, por exemplo, tem pelo menos três dezenas de erros ortográficos, de datas e de nomes, que espero corrigir numa nova edição. Sem dúvida, teria me ajudado muito a corrigir rotas no meio do caminho em obras futuras. Nesse sentido, parece oportuna uma indagação: é importante o papel da crítica nesse mundinho das Histórias em Quadrinhos brasileiras? Ou é melhor manter o jogo do compadrio, das panelinhas e das amizades para continuarmos nesse marasmo de falta de profissionalismo de editores e artistas?

Acho perfeitamente possível se estabelecer uma crítica responsável, sem entrar na ofensa pessoal e no complexo de perseguição. Essa reflexão me surgiu após ler o recém-lançado Ebal – Fábrica de Quadrinhos – Guia de Colecionador, de Ezequiel de Azevedo, da editora Via Lettera. Seu release foi distribuído e divulgado, mas ninguém se dispôs a fazer qualquer comentário crítico sobre o mesmo ou compará-lo com obras anteriores. Não por acaso, creio. Deixou de ser praxe no Brasil, há muito tempo, chamar algum autor para debate sobre sua obra. Ou tem muita gente com memória curta ou, definitivamente, o politicamente correto recomenda que tudo seja recebido sem qualquer questionamento. E o que aconteceu com a ética? Desde que publiquei A Guerra dos Gibis, em dezembro de 2004, acostumei-me a ver na Internet e até em revistas "especializadas" trechos inteiros do livro reproduzidos, sempre sem citar a fonte. É a cultura do "control-C-control-V", da cara-de-pau, somada ao princípio básico da pirataria, na qual respeitar direito autoral é algo que ficou no passado e até provoca risadas.

Agora, sai o livro de Azevedo, cujas duas primeiras partes têm aproximadamente 90% de suas informações retiradas do meu livro, sem, em nenhum momento, a fonte ter sido citada, a não ser na bibliografia, entre muitos outros títulos. O restante traz também uma boa quantidade de dados por mim levantados, porém, diluídos numa abordagem mais específica e por tópicos. Uma apropriação sem cerimônias de uma pesquisa que durou cerca de 15 anos e que me custou financeiramente pelo menos dez vezes mais o que rendeu em direitos autorais. A princípio, o projeto de Azevedo me pareceu bem intencionado e sério. Passei algumas horas com ele na Cafeteria Cristallo, ao lado do Conjunto Nacional, dando-lhe uma longa entrevista, sobre a qual não há qualquer referência em sua obra. Ao ver o resultado, porém, causou-me indignação o modo como ele recorreu ao meu livro. Pergunto: citar uma obra numa extensa bibliografia justifica a sua apropriação em tamanha quantidade, como foi o caso?

Esse, no entanto, não é o único problema grave do livro de Ezequiel de Azevedo. É também o festival de confusão de dados e de muitos erros cometidos, provavelmente pela pressa ou por ele ter recorrido a algumas poucas fontes orais, sem uma devida checagem das datas, lugares e acontecimentos históricos que contextualizam sua proposta. Diz-se lá, por exemplo, que a família Aizen chegou ao Brasil por Pernambuco. Como explicar, então, que Pavel Aizen levou esposa e filhos para São Paulo e foi assassinado no interior desse estado, informação que não resta dúvida, segunda a família? O lugar de sua morte, aliás, sequer foi citado. Pavel foi mascate no interior de Pernambuco? A sucessão de informações erradas, equivocadas e distorcidas é assustadora e ganham ênfase em pequenos detalhes. Ao contrário do que Azevedo escreve, ao viajar para os Estados Unidos, em 1933, Aizen NÃO foi representar vários jornais, mas trabalhar como assessor de imprensa do Touring Club. Os alunos do Colégio Pedro II NÃO fundaram o CENTRO, mas o Clube Juvenilista. Aizen recusou a sociedade proposta por Marinho em 1937 por mágoa e NÃO por ser sócio de João Alberto – informação que pode ser constatada na entrevista que ele deu ao jornal O Pasquim e em documentos pessoais dele hoje arquivados na Biblioteca Nacional. Não existem, que eu saiba, registros que provem o contrário. Quem disse que O Tico-Tico batia "recordes em cima de recordes" no começo da década de 1930, uma vez que os registros disponíveis mostram o contrário?

Azevedo manipula informações de acordo com suas convicções e preconceitos. Ao falar que Roberto Marinho não quis publicar os suplementos propostos por Aizen, por exemplo, ele afirma: "seu chefe (Marinho) não arriscava nada, só apoiando o que daria lucro e retornos garantidos". Ora, sua biografia não diz exatamente o contrário? Ou não foi ele que desafiou a lei e se associou ao grupo Time-Life para montar a Rede Globo? Ao mesmo tempo, por que não considerar o pioneirismo e a grandiosidade da proposta de Aizen para a imprensa brasileira? Sua idéia era inovadora, jamais alguém fizera algo parecido no país. E pelas proporções, exigia um grande investimento, cujo risco Marinho não quis correr naquele momento. Regras do jogo, meu caro Watson. Vale lembrar que João Alberto topara, entre outros motivos, porque dinheiro (público) não lhe era problema. O prédio e a redação de A Nação foram por ele arrancados à força de seu arquiinimigo Assis Chateaubriand - no local, funcionara até meses antes, O Jornal, como observa Azevedo. Lins de Barros, chefe da polícia varguista, criara com seu diário um panfleto político bancado por Vargas.

O livro de Azevedo peca também pela revisão. A mãe de Aizen aparece inicialmente como Sônia, que é correto, e vira Sara para nunca mais recuperar seu nome original. Ao fazer os cálculos sobre quanto Marinho pagou para tomar os personagens de Aizen, o autor chega à conclusão que o dinheiro era equivalente a duas tiragens do Suplemento Juvenil, ou seja, um total de 150 mil exemplares. Em seguida, afirma que Aizen poderia cobrir a oferta, que ficaria em 90 dólares. 150 mil exemplares renderiam 90 dólares na época? Ou entendi errado? Fico apavorado só de pensar que algum pesquisador tome o livro de Ezequiel de Azevedo como única fonte de sua pesquisa e perpetue informações erradas, como é comum nesse mitológico mundo das invencionices dos Quadrinhos brasileiros. Temo também que outros títulos continuem a ser publicados e seus conteúdos festejados em blogs e sites especializados sem que seu conteúdo seja avaliado e, se necessário, questionado. E deixo uma proposta de debate: que tal começar a fazer isso dissecando os meus livros? Mas, por favor, que o faça com a ética e a isenção que rege a verdadeira crítica. E que os argumentos sejam devidamente fundamentados e não baseados apenas em “achismos”.

Um perito criminal não teria muitas dificuldades em apontar o livro da Via Lettera como uma peça de plágio a A Guerra dos Gibis. A estrutura e a semelhança de conteúdo são aberrantes, fato que deixa qualquer autor da obra original indignado, revoltado, irado. Nenhum jornalista ou escritor é dono que uma história contada a partir de fatos reais. Não é justo, porém, que ele tenha se empenhado num sacrifício sobre-humano para recuperá-la e registrá-la em obra publicada e alguém venha se apropriar desse trabalho sem respeitar regras. Ezequiel de Azevedo é professor e formado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e deveria conhecer limites e princípios éticos. Uma postura bem diferente da que teve o pesquisador Rodrigo Arco e Flexa que, em sua tese sobre os super-heróis da Ebal, agiu com extrema lisura e ética, ao citar informações por mim coletadas quando precisou das mesmas. Também se empenhou em pesquisar e ouvir pessoas – um trabalho, aliás, que começou bem antes da publicação do meu livro. Uma postura que merece ser literalmente “copiada”.

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