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Três séculos de Histórias em Quadrinhos
Por Gonçalo Junior
28/05/2007

Não pretendo aqui retomar a discussão para estabelecer se as Histórias em Quadrinhos surgiram há 110, 150, 200, 300 ou cem mil anos – nos tempos das cavernas. Os três séculos do título têm a ver com a soma dos aniversários de três nomes ilustres da história dos gibis, todos estrangeiros, porém somente dois são (bem) conhecidos no Brasil. Nasceram no ano de 1907 e se estivessem vivos comemorariam seu centenário em 2007: o americano Victor Civita (1907-1990), o russo Adolfo Aizen (1907-1991) e o belga Georges Remi (1907-1983), o Hergé, criador de Tintin. Um bom motivo para lembrar, falar (bem ou mal), discutir sobre eles e até reverenciá-los.

Curiosamente, todos trazem em suas biografias algumas polêmicas que refletem ainda hoje dentro e fora das próprias Histórias em Quadrinhos. Hergé caiu na mira dos radicais de esquerda, principalmente a partir da década de 1960, acusado de imperialista, colonialista e racista em algumas aventuras de Tintin. Criado em 1929, sua primeira aventura, a discutida Tintin no país dos sovietes, nunca foi editada no Brasil – o que a Companhia das Letras promete fazer no próximo ano para fechar a publicação da coleção completa. Para muitos, o garoto topetudo de Hergé é o primeiro herói das Histórias em Quadrinhos. Corajoso e apaixonado por viagens, Tintin é um repórter que vive em busca de aventuras e conta principalmente com sua disposição e astúcia para sair das mais diferentes situações de perigo pelo mundo. Cada história sua é uma viagem em todos os sentidos do termo, com suspense, perigos e emoção. 

Muito do que Hergé retratou dos diversos países onde ambientou suas histórias veio da experiência pessoal na juventude, do gosto para conhecer lugares distantes, outros povos e culturas. Havia um esforço de sua parte para apresentar cenários e contextos históricos bastante reais. E foi nesse aspecto que despertou críticas. Hergé passou uma visão crítica ao modelo político adotado pela então União Soviética e uma visão colonialista comum na Europa quando ambientou suas histórias na América e na África. De forma alguma, porém, estabeleceu qualquer tipo de restrição à sua leitura por crianças, adolescentes e adultos.

O conteúdo político de algumas histórias do personagem sem dúvida parece proposital, bem de acordo com o que pensava o autor na época. Nesse aspecto, Hergé se aproximou do americano Lee Falk, criador de O Fantasma e vítima implacável dos teóricos da comunicação, alvo das mesmas críticas feitas ao criador de Tintin. Mas, se os ataques são questionáveis hoje, por que obscurecer todo o conjunto da obra desse herói juvenil, um dos mais geniais e fascinantes dos Quadrinhos? Tintin permanece intocável na galeria dos personagens mais duradouros.

Homem-Abril

Victor Civita nasceu no dia 09 de fevereiro de 1907. Veio ao mundo por acaso em Nova Iorque e foi criado na Itália – sua família, na ocasião, fôra obrigada a migrar para a América. Como procurei mostrar no livro O Homem-Abril – Cláudio de Souza e a história da maior editora brasileira de revistas (Opera Graphica, 2005), ao chegar ao Brasil, em dezembro de 1949, com 42 anos de idade, para montar uma editora, o risco de Civita era calculado.

Ele trazia na bagagem um nada desprezível contrato para publicar revistas em Quadrinhos e de histórias infantis dos personagens de Walt Disney – então, um dos mais poderosos produtores de Hollywood, com seus consagrados desenhos animados – e 500 mil dólares para abrir seu negócio, valor bastante respeitável na época. Ao mesmo tempo, apostar nas Histórias em Quadrinhos não podia ser vista como uma iniciativa modesta, uma vez que, simplesmente, tratava-se de um dos maiores filões do mercado editorial brasileiro.

Civita, como se sabe, fez sua estréia nas bancas com duas revistas em Quadrinhos, Raio Vermelho e O Pato Donald, lançadas respectivamente em maio e julho de 1950. Foi somente a partir da década de 1970, entretanto, que assumiu a dianteira do mercado de gibis, engoliu seus concorrentes principais – Roberto Marinho (RGE) e Adolfo Aizen (Ebal) – e fez com que a Abril reinasse absoluta até pouco depois da morte do fundador, quando entrou em declínio no segmento. A editora, como um todo, não é mais a mesma, graças a uma série de negócios mal sucedidos, que inclui sua participação no mercado de televisão paga – com a TVA.

O fundador da Abril era um apaixonado por Quadrinhos, construiu uma longa história cujo principal mérito foi ter levado excelência gráfica e editorial a tudo que publicou no ramo de gibis. Civita, por isso, merece uma medalha de escoteiro mirim. Quantas gerações não cresceram lendo seus gibis Disney, as histórias de Luluzinha e Bolinha, Mônica e sua turma ou as aventuras dos super-heróis Marvel e DC? De modo estranho, no entanto, o empresário teve seu centenário comemorado em fevereiro, apenas com uma festa fechada para convidados ilustres na Sala São Paulo, centro de São Paulo, e uma nota na revista Veja. Por enquanto, ao que se sabe, parou aí. Como o ano ainda está na primeira metade, resta a torcida para que algo esteja em preparo. Talvez uma biografia menos chata que a oficial, republicada em diferentes edições há mais de 30 anos. Infelizmente, não há indicativos nesse sentido até o momento.

Brasil-América

Uma boa distância, porém, separa a história do fundador da Abril da trajetória de Adolfo Aizen, que se tornou pai da indústria dos Quadrinhos no Brasil, quando lançou o Suplemento Infantil pelo jornal A Nação, em março de 1934 – três meses depois, o jornalzinho seria rebatizado de Suplemento Juvenil. Tive o prazer de narrar sua vida nada mole vida no livro A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras, 2004) – embora não me canse de ler em blogs e sites de especialistas que Aizen ainda precisa ter sua história contada – ou porque acharam meu livro ruim ou porque não o conhece.

Não foi nada fácil fazê-lo. Não me refiro às dificuldades em obter informações sobre sua vida e de Roberto Marinho (1904-2003) – o outro personagem importante do livro –, mas pela complexidade de fatos que envolveram sua trajetória de editor. Com jeito, creio que consegui colocar tudo lá: sua relação com o chefe de polícia de Vargas, o coronel João Alberto, dono do jornal A Nação e com quem desenvolveria uma relação cega de gratidão que o levaria a erros e equívocos, como sua adesão à política ufanista/fascista de Vargas no Estado Novo. E, ainda, sua verdadeira nacionalidade, a falsificação de certidão de nascimento para ter o direito de ser proprietário de uma editora; e a negociata para vender sua primeira empresa para a ditadura Vargas e montar a Ebal, numa clara operação de beneficiamento promovida por João Alberto. Nada disso, porém, jogou sua reputação nas trevas na lama, por causa de sua luta em combater o preconceito contra os gibis e valorizá-los como obras de arte.

Hergé, Civita e Aizen tinham em comum, além do gosto pelos Quadrinhos, o fato de cometerem seus pecados, apesar de somente o primeiro ter sido atacado por isso. Mesmo assim, foram grandiosos no que se propuseram a fazer e ainda esperam o julgamento da história. Para quem gosta de Quadrinhos, parece que eles têm direito a uma celebração especial. Tim tim.

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