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Os quadrinhos da Vecchi
Por Ota
21/02/2011

Neste artigo, o figuraça Ota mais uma vez volta no tempo e conta suas memórias com relação às grandes editoras de Quadrinhos onde trabalhou. Depois da EBAL, o maluco agora nos leva de volta ao ano de 1973, quando entrou para a Vecchi. A saudosa editora lançou a MAD no Brasil,  e ainda deu carta branca para Ota publicar revistas 100% nacionais como as históricas Spektro e Chet, que marcaram época e deixaram um lacuna no mercado até hoje não preenchida. Com vocês, direto da Máquina do Tempo do Ota:

Os quadrinhos da Vecchi

Depois que saí da Ebal (veja os artigos aqui e aqui) meu emprego seguinte foi na Vecchi. Eu ainda cursava Jornalismo na UFRJ e estava pensando no que ia fazer, quando o telefone de casa tocou. Era o Eduardo Baron, que tinha conhecido na Ebal quando ele fazia o Judoka. Ele disse que tinha estado numa editora e sabia de algo que poderia me interessar e se dispôs a me apresentar ao dono, Lotário Vecchi.

A tal editora era a Vecchi, que quase não publicava HQs. A única que eles estavam lançando naquele momento era o cowboy italiano Tex. Mas, no passado, a Vecchi tinha lançado revistas importantes como Xuxá, Pequeno Xerife e Pecos Bill, todas na década de 50. Mas não só essas, um dos grandes sucessos da editora era a famosa magazine Grande Hotel, que quando começou na década de 40, era tecnicamente uma revista de quadrinhos pois as fotonovelas eram desenhadas em estilo realista, simulando fotos.

Aliás, a entrada da Vecchi nos quadrinhos se deu na década de 1920 com a efêmera Mundo Infantil, lançada em 1928, bem antes do Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen. Por ironia a Vecchi foi pioneira na publicação de Quadrinhos no Brasil!

A editora foi fundada em 1913, quando Arturo Vecchi veio da Itália para abrir uma filial da Vecchi italiana, criada por seu irmão Lotario Vecchi (não o que ia me entrevistar, mas um tio deste, homônimo). Lançou com sucesso os “folhetins”, que eram romances populares publicados semanalmente em continuação, tipo uma novela no papel. Arturo Vecchi foi expandindo seu império, sempre voltado para publicações populares, lançando entre outros os livros de Arsène Lupin, de Maurice Leblanc. Na década de 1940 consolidou-se lançando Grande Hotel e os famosos álbuns de figurinhas, virando líder de mercado nesse segmento.

Arturo Vecchi morreu na segunda metade dos anos 60 e o comando foi assumido por seu filho Lotário, que fez algumas inovações. Acabou com a linha de livros e dedicou-se apenas aos periódicos. Não só expandiu a linha de fotonovelas como trouxe inovações, lançou a revista  de corte e costura Figurino Moderno,  que foi um sucesso por causa dos moldes do famoso costureiro Gil Brandão, uma espécie de Clodovil da época. Este, por curiosidade, tinha começado a vida profissional justamente como desenhista de HQ, nos anos 50, na revista Sesinho, desenhando a belísisma HQ Raça e Coragem. Gil abandonou os quadrinhos para se dedicar ao mundo da moda e fez fama como costureiro.

Naquele ano de 1973, sua única publicação em quadrinhos era Tex, iniciada em 1971. Mas Tex, naquela época, era uma revista de vendas apenas regulares. Não era o sucesso que é hoje. O primeiro número, que veio com um arco e flecha de brinquedo de brinde, vendeu quase 100 mil exemplares, mas no segundo, sem brinde algum, despencou. A revista quase foi cancelada, mas como as vendas iam aumentando paulatinamente a cada número, Lotário resolveu mantê-la. Naquele momento Lotário tinha decidido entrar no mercado de quadrinhos de vez e precisava de alguém para tomar conta de uma nova redação que iria montar. Ele comentou isso por acaso com o Baron quando este foi levar ilustrações para uma revista para crianças chamada Miau (era Lotário que aprovava pessoalmente os desenhistas) e Baron disse que conhecia alguém que podia ter o perfil que eu estava procurando.

Foi assim que eu fui parar lá, por volta de setembro de 1973. A história é muito pitoresca. Em sua sala, depois das apresentações, Lotário me olhou muito sério e disse:
-- Senhor Otacílio, vamos ver se o senhor entende mesmo de quadrinhos. Vou fazer um teste. Quem são os sobrinhos do Pato Donald? Qual o nome da namorada do Mickey? Qual é o cavalo do Fantasma?

Fiquei atônito quando ouvi aquelas perguntas ridículas que qualquer leitor saberia responder. Achei que era brincadeira. Mas fui respondendo as três. Conversei mais alguma coisa e Lotário se levantou da cadeira, entusiasmado, e apertou minha mão:

-- Senhor Otacílio, o senhor foi o melhor candidato que apareceu até agora. Parabéns. Daqui a um mês eu o chamo para trabalhar!

Saí de lá estupefato, não levando a menor fé naquela entrevista ridícula. Qualquer outro idiota (o termo nerd ainda não se usava) que aparecesse por lá pegaria o emprego. Não acreditei que ele fosse me chamar. Mas, um mês depois, ele realmente ligou para a minha casa perguntando se eu estava animado e podia começar a trabalhar. Fui para uma reunião complementar para tratar de salário e, no dia Primeiro de Novembro de 1973, lá estava eu arregaçando as mangas no meu novo emprego. Nem sala eu tinha: ficava numa pequena mesa no corredor ao lado da sala do Lotário.

Agora que eu era da casa, ele me mostrou os planos. Tinha adquirido uma penca de personagens e ia lançar um monte de revistas de uma vez. Pegou praticamente tudo o que estava disponível no mercado. Meu salário inicial era baixo, um pouco mais alto que o da Ebal, mas ele me disse que à medida que fossem saindo mais revistas ele iria me aumentando. E de fato cumpriu a promessa.

Os primeiro lançamento seria Eureka, uma revista nos moldes das Linus e Eureka italianas, aproveitando tiras diárias e outras histórias estrangeiras. O formato já tinha sido testado no Brasil pela Grilo (da editora Espaço-Tempo) e mais tarde pela Patota (da editora Artenova), que fizeram certo sucesso publicando personagens considerados de vanguarda como Peanuts, Mago de Id e outras. Grilo fora fechada por causa da ditadura militar, que acabou com os jornais políticos que a mesma editora também publicava. Álvaro Pacheco, da Artenova, comprou esses personagens e lançou com sucesso a Patota. Quando Lotário foi comprar os personagens para a Eureka, poucos estavam disponíveis e ele pegou a raspa do tacho - essa foi uma das razões do fracasso da revista. O povo não queria mais saber de personagens já meio ultrapassados como Pafúncio e Pinduca, que se misturavam com outras mais modernas como Versus de Jack Whol e outros personagens meio inexpressivos ou pouco conhecidos. Do que publiquei na revista, apenas os cartuns de Jules Feiffer estavam no nível da Linus original italiana. O mix em si era por demais irregular e o preço, 5 cruzeiros, não cabia muito no bolso de qualquer leitor daquela época.

Infelizmente Eureka teve um problema atrás do outro. Primeiro descobriram que o título já estava registado: era uma revista de palavras cruzadas lançada por uma pequena editora. Compraram o título do proprietário. Depois, houve um problema com as piadas de Feiffer da primeira edição. Como era a única coisa realmente de impacto, investi tudo no Feiffer. Sugeri ao Lotário fazer um pôster com uma das piadas, relativa ao caso Watergate, que estava despontando na época: Nixon era revistado por um policial e estava roubando até os talheres da casa branca - e jogava a culpa no vice Spiro Agnew. Se tivesse saído desse jeito talvez Eureka tivesse decolado. Mas, quando o então diretor de publicidade da editora viu a amostra já impressa, foi apavorado na sala do Lotário dizendo que era muito arriscado publicar um material desses. Que os militares não iam gostar nada, porque aquilo era uma ofensa ao presidente de um país amigo, blá blá blá e o resultado foi que a tiragem toda nem saiu da gráfica. Virou apara de papel na mesma hora. As piadas de Feiffer e o poster foram substituídos às pressas e a tiragem inteira de 80 mil exemplares foi reimpressa. Mas o pior ainda foram os resultados da venda: Dos 80 mil venderam-se apenas 20 mil. O que no jargão editorial era definido como "cano". O segundo número teve a tiragem reduzida à metade e vendeu apenas 10 mil. O lançamento seguinte, um álbum com uma aventura de Michel Vaillant, de Jean Graton, também foi outro fracasso retumbante. Comecei minha carreira de editor com dois fracassos e cheguei a pensar que não ia durar muito naquele emprego.

Mas Lotário não estava disposto a desistir. Ele tinha comprado muitos títulos. Amealhou os personagens da recém-falida editora O Cruzeiro como Gasparzinho, Brasinha e Pimentinha, e mais 13 de procedências diversas. Ia lançar ao todo 16 revistas em formatinho, mercado no qual a única concorrência era a Editora Abril - que com suas linhas Disney e Maurício de Sousa vendia horrores. Me restava uma sobrevida, podia ser que alguma dessas desse certo. Mas o que eu não imaginava era que meu emprego estaria mais que garantido com uma outra revista que ele estava comprando, mas não dizia qual.

- Senhor Otacílio (Lotário sempre me chamava de senhor, mesmo eu sendo na época um moleque de 19 anos), estou fechando um negócio muito bom com uns americanos, mas por enquanto não vou dizer o que é para não dar azar.

Só um  mês depois fiquei sabendo o que era. A tal revista americana era a Mad. Lotário me perguntou se eu conhecia e eu disse "claaaroooo" e meus olhos brilharam. Ele tinha acabado de fechar o negócio com o lendário William Gaines e a revista seria lançada a toque de caixa. Por contrato, tinha que sair até 30 de junho de 1974.

Escaldado pelo fracasso da Eureka (que logo seria cancelada), Lotário foi mais cauteloso. A tiragem inicial da Mad foi de 40 mil exemplares e seria distribuída apenas no Rio e São Paulo, para testar o mercado. Conforme fosse, o encalhe seria redistribuído no interior.  A "turma do contra da Vecchi" deu um sorriso maroto. Havia uma rixa na família Vecchi e ele não se dava com alguns parentes que trabalhavam lá. Mas, por ser o presidente, todos tinham que obedecê-lo. Talvez o fracasso da Mad fosse o que eles precisavam para derrubá-lo. Entretanto, um milagre ocorreu! Uma semana depois vieram os primeiros check-ups de bancas e a constatação: Mad estava vendendo horrores!!! Uma tiragem adicional de mais 30 ou 35 mil foi impressa para suprir o interior, já que praticamente não voltaria encalhe. Meu emprego estava salvo e ainda ganhei um aumento por conta.

Quando entrei, era um simples idiota que preparava as revistas em quadrinhos hostilizado por todo mundo na Vecchi. De uma hora para outra passei a ser admirado e elogiado. Eu era o responsável pelo maior fenômeno editorial do ano!!! A tiragem foi aumentando e quando saiu a edição 5, com uma capa da sátira do filme Golpe de Mestre  mostrando Nixon e Agnew no lugar dos vigaristas interpretados por Paul Newman e Robert Redford (desta vez ninguém reclamou), arrebentou a boca do balão! No fim do ano Mad estava chegando na casa dos 150 mil exemplares e crescendo. O ano de 1974 terminou coroado de sucesso. Além da Mad, no mês de outubro foram lançadas também Brasinha e Gasparzinho, com tiragem de 200 mil exemplares, que também venderam muito bem. O novo formatinho era um sucesso. Lotário entrou eufórico na minha sala:

- Senhor Otacílio, seu salário acaba de ser dobrado! Brasinha e Gasparzinho foram um sucesso. Agora seu emprego está mais que garantido!!!

No ano seguinte vieram os 14 outros títulos infantis comprados. Nem todos venderam bem. E com a passagem das revistas da Rio Gráfica para o formatinho, e a reentrada da Bloch no mercado, as próprias vendas de Gasparzinho e Brasinha caíram um pouco. Mas o grupo dava muito lucro. Mad era o carro-chefe e Tex, que pertencia à editoria de fotonovelas, veio para a minha mão e as vendas não paravam de aumentar. Com 20 anos eu era o responsável pelo setor mais lucrativo da editora. Enquanto as revistas de fofocas e de moda eram caras de produzir, envolviam profissionais caros, a nossa redação era formada de um maluco-chefe (eu) e um bando de cabeludos com cara de hippies. Ninguém ousava se meter com a gente, pois em time que está ganhando não se mexe, embora a redação de quadrinhos fosse maldosamente apelidada nas internas da Vecchi de "A Gaiola das Loucas", uma referência à peça teatral de sucesso da época, que depois virou um filme francês com Ugo Tognazzi e mais tarde foi refilmada nos EUA com Robin Williams no papel do dono da boate gay. Não éramos gays, mas não nos importávamos com o deboche. Eu e todos os que trabalhavam comigo nos divertíamos fazendo o que mais gostávamos: preparar revistas em quadrinhos! 

A seguir: Os Quadrinhos Nacionais da Vecchi

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